sábado, 14 de agosto de 2010
Memórias
E do colégio? Como era aquela época? Eu cumprimentava o bedel? Falava com os professores? Tinha amigos? Como eles eram? Quais eram minhas maiores preocupações? Tentar entender matemática, suponho. Eu entendia? Quantas flores bonitas por aqui. Eu particularmente gosto das amarelas, lembram-me do sol, que a propósito não passa por aquela janela empoeirada.
Por favor, faça-me lembrar daquele dia em que não parávamos de falar, a aula toda, todas as aulas. Por que você está me olhando com essa cara? Por que você não fala nada agora? Falamos até na sala da coordenadora - que resolveu falar com nossos pais. Como tínhamos tanto assunto?
As provas. Prove-me que estas lágrimas em seu rosto não são por minha causa. Me explica como eu fazia para ir tão bem. Quer dizer... Eu ia bem, não ia? Eu sei que ia: até ensinava os outros - claro que essa era uma desculpa bonita para que eu aprendesse mais -, eu te ensinava. Você me ensinava. Ou tentava.
Enumere as vezes que jogamos baralho e eu perdi. Fácil: eu sempre perdia. Pra falar a verdade, nunca entendi a ordem do truco, que muda a cada rodada. Podíamos jogar truco. Pena que meu corpo está preso nesta cama. Mas fingia.
Sempre fingi muito bem. Menos quando me apaixonei. Confesse-me o que pensou do meu primeiro amor, como eu fiquei chata naquela época. Como você aguentou meu monólogo, meu único assunto durante aqueles dias? Já sei: aguentou como está aguentando agora. Só eu falo. Continuo falando. Aliás, como ele era mesmo?
E do meu primeiro beijo... Como foi? Eu sei que você sabe. Com certeza deve ter sido o primeiro a saber. Beije-me, por favor. Da minha primeira batida de carro. Eu chorei? Do meu primeiro emprego.
Nunca imaginaria como você seria importante para mim. Estou me sentindo uma velha, caduca. Sou uma. Do meu casamento você não pode falar. Você não estava lá. Não te convidei. Nem do nascimento da minha filha. Do meu filho. Da minha outra filha. São três? Acho que sim. Do dia em que me separei. Do sofrimento que tive quando perdi meus pais. Quando me senti só e totalmente só no mundo. Onde você estava? Quando me enfiei no trabalho e não quis mais sair. Eu fiz isso? Das minhas bebedeiras, nem me lembre. Eu mesma não lembro.
Você é minha memória. Pare de chorar, não chore pelo passado. Você está chorando pelo passado, né? Diga que não é pelo presente, não é pelo presente! Em quem sempre confiei. Como nos conhecemos mesmo?
Oh, meu deus. Quem é este homem que está me encarando, próximo demais a minha cama. Será que não é hora de tomar remédio? Eu te conheço? Quem é você? Não se aproxime, pare por aí, não se aproxime! O quê? Visita? Não te conheço. É mentira! Você é um estranho! Saia daqui, por favor. SAIA.
- ENFERMEIRA!
domingo, 8 de agosto de 2010
Vidas
Ele já era velho quando se conheceram. Ela era moça. Perdida. Fugira da casa dos pais aos 16. Não aguentava mais a mãe bipolar - e viciada em remédios. Mudou-se para a casa da tia (lésbica). Saiu. Virou hippie. Cheirou, bebeu. Dormiu em qualquer lugar. Inclusive com o velho - que tinha uma bela casa na praia, dava festa para intelectuais e era... Casado.
A mulher dele se matou. Na frente dela. Com um tiro na boca. Seu fantasma a acompanhou por toda sua vida. Agora tinha que fazer o homem por quem a outra se matara feliz. Ou não conseguiria ser feliz. Tentou ser a melhor esposa possível. Vivia para ele. Por ele.
Até virar mãe, quando passou também a viver para os filhos. Agora eles eram grandes. Crescidos e vacinados. Não precisavam mais dela. Um deles, rapaz estudioso. A outra, uma menina rebelde e independente. Não conseguia entender a vida da mãe, a via com nojo: era submissa, não trabalhava. Vida inútil. Dona de casa. Sobrevive às custas do marido. Sobreviveu às custas do marido. A vida inteira. Inteira?
Inteira da filha, pelo menos. Desde que nasceu, viu a mãe em casa. Levando-a para a escola. Buscando-a. Servindo o almoço. Viviam bem, afinal. O pai era dono de uma editora. Não precisavam ter outra pessoa trabalhando para o sustento da família. Sustento financeiro, digo.
E emocional? O que era ela? O que era sua vida? Para a filha, uma fracassada. Mal sabia que... Mal sabia por tudo que tinha passado. O que tinha passado? Tinha um passado?
Para os outros, era um enigma. Seu presente, passado e futuro eram um mistério.
Até que... O marido morreu.
E ela renasceu. Estava nova.
Ele se foi. E junto a ele, seu presente opressor. Seu passado escondido. E seu futuro óbvio.
Libertou-se.
Do quê?
[Ok, se você já viu A Vida Íntima de Pippa Lee, reconheceu a história. Se você não viu, eu acabo de tirar grande parte da graça do filme. Assista se quiser. E já aviso: o final é tosco]
terça-feira, 3 de agosto de 2010
Gata na cama
Não ouço ela chegar.
Sinto.
Vem em cima de mim.
Caminha sobre meu corpo.
Pede por carinho.
Deita.
Ouço sua respiração.
Dorme.
Durmo.
... Quando acorda, vai comer sua ração e fazer suas necessidades em uma caixa de areia.
quarta-feira, 14 de julho de 2010
Juice & Co

Bom, independente de qual for a escolha, aliada ao ambiente super agradável, uma coisa é certa: dá para sair revigorado. Para comer, peça o Lamburguer - hamburguer de cordeiro, com um molho leve de queijo de cabra e ervas finas.
La Mole

segunda-feira, 5 de julho de 2010
Le Petit Nicolas
Se você já frequentou aulas de francês, com certeza ouviu falar do Nicolas. Personagem principal da obra de René Goscinny, ilustrada por Jean-Jacques Sempé, ele é o responsável por narrar os acontecimentos de sua infância - que há mais de 4 décadas encanta garotos e garotas de todas as idades.
Agora, Nicolas saiu dos livros (a série conta com diversos volumes) e foi para as telonas. Assim como nos contos, o filme - dirigido por Laurent Tirard - é permeado por sacadas ingênuas, mas geniais. Por piadas inocentes, mas sagazes. Por coisas de gente pequena, mas que agradam (e muito!) gente grande.
Só para se ter uma ideia, a sala onde assisti estava repleta de adultos - não tinha uma criança sequer. E todos riram. Feito crianças.
Très chouette!
domingo, 20 de junho de 2010
Trânsito paradoxal
sexta-feira, 18 de junho de 2010
Cochilo
quarta-feira, 16 de junho de 2010
segunda-feira, 14 de junho de 2010
sábado, 12 de junho de 2010
Bella Paulista

domingo, 6 de junho de 2010
De artista e louco...
segunda-feira, 31 de maio de 2010
Drosophyla

domingo, 30 de maio de 2010
Sonique

sexta-feira, 28 de maio de 2010
Bomba nacional
Pense em um filme com duas bombas atômicas explodindo no Brasil. Uma próxima a Manaus e a outra na baía de Santa Catarina. A primeira, abre uma clareira de 10 quarteirões no coração da Amazônia. A segunda, faz uma marolinha. Os mandantes? Narcotraficantes colombianos com um sotaque de araque irritadíssimos com o Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM) que atrapalha suas investidas país adentro. Junte a isso Thiago Lacerda como um agente da ABIN que se enrosca com a filha de sua chefe e coloque Milton Gonçalves no papel de presidente - com direito à cena dele rodeado por criancinhas + hino nacional ao fundo. Para finalizar, apresente os modelos de aviões da Aeronáutica Brasileira e toda sua capacidade. Ah! Não deixe de colocar no final alguns dados enaltecendo o exército.
O resultado? Uma bomba. Atômica. Que faz rir, para não chorar. E faz também sair do cinema com vergonha alheia.
domingo, 9 de maio de 2010
Ser mãe
Não digo isso pelos meses tendo que carregar um bebê na barriga, pelos enjôos que isso causa, pela dificuldade para dormir durante a gravidez. Não digo também pela dor de largar o filho no primeiro dia da escola, pelo desespero ao vê-lo cair - enquanto aprende a andar, pelas fraldas a serem trocadas ou pelos choros de madrugada. Não estou dizendo pelas noites mal dormidas, pelas olheiras, pelo cansaço do dia seguinte. Nem pela dificuldade que é pensar "será que estou criando meu filho do jeito certo?" ou pelas incertezas do futuro: o que será dessa criança.... Também não digo que é difícil ser mãe pela responsabilidade em protegê-lo, pelo medo de que se envolva com más companhias, pelo medo dos outros.
segunda-feira, 26 de abril de 2010
Sonhos roubados
Sonhos Roubados, filme de Sandra Werneck, tem uma temática difícil. Apesar de recorrente em filmes brasileiros, e até batida, a dupla pobreza/violência continua sendo complicada de se retratar. Ainda mais se considerarmos que os personagens centrais são jovens mulheres. Facilmente, pode-se errar na dose. E foi o que aconteceu.
Buscando a aproximação com a vida de três adolescentes de uma favela carioca, a diretora peca pela tentativa de sensibilização, de mostrar que apesar do sexo, das drogas e da violência, elas são apenas meninas. Não são. Elas têm problemas de gente grande, agem como gente grande e, de vez em quando, mostram-se doces meninas. De vez em quando.
Jéssica (Nanda Costa) tem 17 anos, uma filha para criar e se prostitui para ter dinheiro, que é usado, entre outras coisas, para cuidar do seu avô. Sabrina (Kika Farias) também faz da prostituição fonte de renda, apesar de trabalhar em um bar durante o dia. Seu problema se agrava quando ela se envolve com um traficante – e engravida. Daiane (Amanda Diniz) completa o trio: é a mais nova, e com apenas 14 anos vê-se dividida entre a vontade de ter uma festa de 15 e ser reconhecida por seu pai e o caminho que seguem suas amigas. Sem contar com os abusos que sofre de seu Tio Peri, interpretado por Daniel Dantas.
Pedofilia, prostituição, gravidez na adolescência, tráfico de drogas, pobreza e violência são temas extremamente pesados mas que acabam sendo tradados sutilmente no filme. É como se tudo isso fizesse parte da vida daquelas garotas, fosse normal, e que o importante seja alcançar seu sonho – independentemente de como. A superficialidade com que são tratados os temas incomoda.
As meninas vendem seus corpos com uma facilidade sem tamanho. Poucos são os momentos em que a dor de se prostituir ou a melancolia aparecem. E se aparecem, acabam não bem aproveitados. Não há um aprofundamento na discussão e nem mesmo uma sensibilização por parte do público. A impressão é que, tamanha é a vaidade das garotas (conseguir uma calça jeans de R$49, ter uma festa de 15) que se prostituir compensa. Ou mesmo a pedofilia. Os dramas não recebem a proporção que deveriam ter. As lágrimas não comovem.
A tentativa de sensibilização é falha e os diálogos levam grande parte da culpa. Ao invés de naturais, eles acabam por servir, na maioria das vezes, como muletas para a continuidade da história. Diversos são os momentos em que explicações longas sobre fatos passados são dadas em meio às conversas, para que assim, o público possa entender o que levou as personagens àquelas situações. É o caso da cena do cemitério, por exemplo. Desnecessária.
O filme parece ser feito para expor o cenário cruel em que vivem meninas brasileiras, mas, definitivamente, não envolve o público. As histórias acabam por, apesar de trágicas, levando a clichês. A vida difícil que meninas reais vivem parece ser menosprezada na ficção. E o final colabora para esse desprezo.
domingo, 18 de abril de 2010
Melhor coisa
Amores não correspondidos certamente não são uma das melhores coisas do mundo. Devem estar entre as piores, até. No novo filme de Laís Bodanzky, justamente chamado As melhores coisas do mundo, o drama de paixões da adolescência - sejam elas quais forem - é retratado. Não só eles, mas também as dúvidas, incertezas, e problemas inerentes da idade. Com leveza - e diálogos - praticamente naturais.
O filme mostra alunos de um mesmo colégio em São Paulo, cidade que aparece com seus congestionamentos e seus muros grafitados. Nele, estão adolescentes em busca de uma identidade, algo próprio da fase. São meninos que lutam dia após dia para terem a certeza de quem são. Seja conseguindo o beijo daquela(s) garota(s) (ou daqule professor), escrevendo em seu blog, bebendo com os amigos, criando um grêmio no colégio - para se diferenciar dos outros, e assim, firmar-se como próprio.
Mano (Francisco Miguez), o protagonista, está cansado da bolha sem ar (como ele próprio define) que é seu colégio. Briguinhas e fofocas são aumentadas com a presença tecnológica - sms são trocadas com extrema rapidez, máquinas fotográficas registram cada segundo, que logo é multiplicado na internet - há até uma aluna que mantém um blog para isso. O bulling se intensifica e de uma hora para a outra, pode-se virar o "zoado da vez". Ninguém está imune. Nem a bonitona do colégio.
As cenas são rápidas, os conflitos aparecem e desaparecem com a mesma velocidade que se passa nossa adolescência. Tudo anda depressa. Até mesmo os momentos de reflexão da personagem mostram ao fundo, fast foward.
Se os problemas pelos quais passam as personagens podem parecer bobinhos a princípio, lembre-se: estamos falando da adolescência. Tudo é bobo se visto de fora. Agora e visto de dentro? É um furacão. E eles parecem crescer a medida que nos envolvemos com os personagens. O sofrimento de Pedro, irmão do protagonista, com o fim de um namoro. A angústia de Gabriela, melhor amiga de Mano, ao saber que o colégio todo descobriu seu segredo. A pressão que sente o personagem principal para perder a virgindade. Tudo parece exagerado. Mas não é.
Difícil não se identificar com os personagens. O roteiro faz com que saiam da boca dos adolescentes frases extremamente verdadeiras, verossímeis. A dor, a alegria, todos os sentimentos são válidos. A dificuldade de encarar a separação dos pais - e ainda mais o motivo pela qual se deu. A felicidade em tocar violão com os amigos, e cantar Something, dos Beatles. Tudo. Tudo é válido. Afinal, sem as piores coisas do mundo, não haveriam as melhores.
sábado, 10 de abril de 2010
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A adolescência é um período difícil. Repleto de questionamentos. Quem sou eu? Criança? Adulto? Sou alguma coisa? Um momento repleto de insegurança. O colégio está acabando, o que farei? Que caminho seguir? Seguirei algum caminho? Uma época em que já não se é mais nada do que se foi e ainda não se tornou nada do que se será. É quando ocorrem as transformações, as mudanças internas e externas. Mudanças psicológicas e físicas. E é justamente por essa fase da vida em que se encontra o personagem principal de Os famosos e os duendes da morte, primeiro longa Esmir Filho.
Morador de uma pequena cidade de colonização alemã, localizada no sul do Brasil, o rapaz, interpretado pelo novato Henrique Sorré, afirma em dado momento que não é uma criança idiota. Mas tampouco é um homem. Ele passa os dias perdido, vagando pelas ruas limitadas da cidade ou pelos caminhos infinitos da internet. Se por um lado, ele se vê sufocado pelas restrições de onde vive, por outro é por meio da rede que ele tem a possibilidade de escapar.
A fuga é um elemento constante em toda a trama. E diversos são os meios pelos quais ela é dada: a arte (o menino escreve, desenha durante a prova de química, forma essa de escapismo, de criar seu mundo melhor, de perder-se em suas criações e evitar o confronto com o real); a tecnologia – os fones de MP3 colados aos ouvidos da personagem, enquanto caminha pelas ruas desertas; a droga, a maconha que o garoto fuma com o amigo; a bebida, o vinho tomado com a mãe, a “felicidade” compartilhada do gargalo; ou ainda, a morte. Sim, a morte ronda a cidade. Fantasmas, espectros. Como forma de libertação, muitos são os moradores que optam pelo suicídio, saltando da ponte – que se torna também uma personagem e ainda metáfora.
É esse o caminho que escolhe a menina auto-apelidada “Jingle Jangle”, irmã do melhor amigo do menino que se diz ser “Mr. Tambourine Man” – o personagem principal. Ambos os nomes estão ligados à canção de Bob Dylan, ídolo do garoto, que tem uma fixação pela garota. A falta de nome das personagens (menina sem pernas, menino sem nome, respectivamente) nada mais é do que um claro questionamento da própria identidade, que se esconde atrás de um apelido. Em nenhum momento o personagem principal é chamado por um nome. Nem na escola, quando ele é o último a ser escolhido para fazer parte do time de futebol, nem nos créditos: em que ele se resume a pontos. Ele não é nada. E o pouco que tenta ser, é traduzido em seu mundo cibernético – em meio a textos em blogs, conversas no MSN, vídeos do Youtube e fotos no Flickr.
Os nomes não são importantes. Mas se nem a cidade tem um nome, por outro lado, a cachorra de estimação da família tem: Inês. É com ela que a mãe do rapaz conversa, já que poucos são os momentos em que se estabelecem um diálogo entre os dois. Incomunicabilidade. O menino não tem o que falar com sua mãe, não tem o que falar com seus avós. Aliás, a dificuldade de manter os laços familiares surge como resposta à busca pelo novo, à repudia da cidade, da tradição. O menino nega visitar túmulo do pai. Nega participar de uma tradicional festa junina, em que a cidade inteira de reúne. Ele quer algo diferente. Não quer mais aquela vida.
Ainda sobre o dilema comunicacional, que de certa forma tem a ver com a negação do garoto, em uma cena acaba evidente. Ao visitar seus avós, o rapaz é deixado com o avô, enquanto a avó vai buscar dentro de casa um pão. Silêncio. Eles se encaram. Não se estabelece a comunicação possível. Em compensação, quando retorna, a velha conversa com o marido. Em alemão. O espectador? Fica sem entender nada. Vazio. Como o menino.
Tanto o garoto quanto o local em que se passa o filme estão perdidos no meio do nada e são abraçados pela névoa. Não são nada. Vazios. A fotografia do filme, inclusive, colabora para a criação desse clima de melancolia. As cores são escuras. Os locais são mal iluminados. Se a noite é preta, o dia é cinza. Nem mesmo ele escapa da sobriedade. Frio. Sombrio. 5°, indica o rádio em dado momento do filme. Gelado. As emoções congelam-se, entediam-se. O personagem também.
O filme é permeado por uma sensação de claustrofobia, de angustia por estar sempre no mesmo lugar. A profundidade de campo reduzida é um recurso usado com frequência e que garante essa sensação. O desfoque, as cenas que se misturam, a falta de profundidade reforçam esse vazio, essas incertezas.
Logo no início somos levados ao quarto do garoto. Vemos o teto. A câmera demora. É lenta. Não sai de lá. Quer ver mais? Quer sair dali? Quer correr? Não há pernas, não há espaço. Quer mudar? Não se sabe como. Assim como o garoto. Morte? Uma saída. Mas falta coragem para enfrentá-la. E mesmo se a enfrentar, será capaz de livrá-lo de suas dores?
Aliás, até metade do filme não se tem conhecimento de um dado importante: as altas taxas de suicídio na cidade. Por meio de uma conversa banal com o seu amigo, tudo se esclarece (inclusive a cena se torna mais clara, no sentido literal da palavra). Quem é a menina, Jingle Jangle, o que aconteceu com ela, o que acontece com o garoto. Entende-se porque ela não tem pernas. Não consegue fugir correndo dali. Apenas saltando, voando. Morrendo. Entende-se quem é a garota. Está morta.
Se a menina não passa de um fantasma em sua imaginação, ela está bem viva ali: na internet. Nem da morte escapa-se quando se está imortalizado na internet - espaço onde os mortos vivem. Se por um lado, o computador serve como fuga para o garoto, por outro o faz voltar ao passado, recordando da menina. Remoendo sua dor. Sim, ela está ali, viva em imagens gravadas com seu então namorado, interpretado pelo também roteirista Ismael Canepelle, personagem enigmático que ronda, como um espírito, a cidade e aumenta a curiosidade e fixação do menino pela garota.
Os vídeos são os responsáveis por quebrar a narrativa. Constantemente surgem gravações granuladas, com enquadramentos amadores, como se estivéssemos assistindo a um vídeo do Youtube transportado para a tela do cinema. A qualidade é baixíssima. O efeito, porém, altíssimo. A mistura das linguagens enriquece o filme, que não só traz a penumbra da cidade, mas também cenas caseiras – e deveras non sense – feitas por dois jovens, entediados.
Da mesma forma como as linguagens se misturam, o real e o imaginário também. Perdido na realidade, o garoto principal da trama passa a vida entre sua rotina prosaica e suas noites na internet, vendo o que deixou a menina morta. Ele a vê. A imagina. Junta os mundos por meio da rede. É por meio dela que se imagina como seria estar em um show de Bob Dylan.
Sendo assim, há a mescla da realidade com o virtual. Ele conversa com amigos pela internet, que o incentivam a sair daquela cidade – enquanto trava diálogos com o amigo da cidade, que insiste para que ele pare com essas idéias de querer mudar. Imagens se sobrepõem: como é o caso da estrela iluminada no teto que pousa em sua mão. O céu estrelado por adesivos que se funde com o menino caído nos trilhos do trem. O clima é onírico.
Dúvidas, incertezas. A câmera também é incerta. Ora filma o garoto, ora o perde. Também está perdida. Em dado momento, a mãe dança e chora. E é nessa dança circular que a trama se mantém, sem chegar a uma conclusão fechada. O círculo, aliás, aparece em outras cenas: quando o amigo do menino, de bicicleta, o circunda enquanto este caminha reto. Quando ele brinca no gira-gira. Gira, gira, sem sair do lugar. Não tem como escapar. Assim como é a morte.
Por meio da fotografia escura, da trilha sonora folk-indie (com músicas feitas especialmente para o filme), do personagem principal que pouco fala, da mistura de linguagens, constrói-se um mundo próprio, repleto de dúvidas e incertezas. O filme é capaz de traduzir, em imagens – pois poucos são os diálogos – as sensações de um adolescente perdido. O clima que se tem é como se aquilo não passasse de um sonho, uma fase, vai terminar rápido. Uma fase triste, sombria, tenebrosa, incerta. Assim como é a adolescência para muitos.
terça-feira, 30 de março de 2010
A vida dura mais que 90 minutos
Aos 30 anos, Zeca segue sem saber o que fazer de sua vida. Vivendo da mesada da falecida mãe, casado com a bem sucedida Júlia e empacado na 50ª página de um romance, o dito escritor passa os dias sem saber o que escrever, nem para onde ir. Esse é o clima de Histórias de amor duram apenas 90 minutos, filme de Paulo Halm.
O tempo vai passando, o protagonista vai se pressionando para sair de seu bloqueio criativo e vai se angustiando com um relacionamento que após 5 anos, já não dá tudo que ele procura. Tempo. Fator importante em sua trama. Literatura, de certa forma, também: ela se confunde com a vida, e o bloqueio literário pode ser também um bloqueio de sua vida pessoal. Drama, comédia e romance são outros elementos que fazem parte do filme, mesclando aspectos existencialistas com o riso, melhor forma do escapismo, e romance – afinal, trata-se sobre relacionamentos.
Em busca por inspiração, os dias do rapaz interpretado por Caio Blat são resumidos em andanças pelas ruas de um Rio de Janeiro diferente do que se vê nas novelas ou em outros filmes, cercado de favelas. Um Rio de Janeiro não mais cheio de belezas, cidade maravilhosa. Nem Ipanema é tão bonita assim. A ambientação do filme, a fotografia, tudo leva a certo tédio, ou melhor, a uma cidade normal, a uma vida normal. Tão normal que de nada se pode inspirar. Daí seu bloqueio criativo. Ao rondar pelo Rio, Zeca vê diversas mulheres, imagina histórias. Não as escreve, nada o estimula tanto assim. Sem contar na pressão para escrever seu livro, que desfavorece a criatividade e é aumentada a cada visita que faz ao pai, vivido por Daniel Dantas.
Sem rumo, o protagonista não consegue progredir com sua escrita e, ao mesmo tempo, estaciona com sua própria vida. O casamento está num impasse. Ela fazendo seu doutorado. Ele não fazendo nada. Ela está sempre ocupada, estudando. Ele está sempre preocupado, andando, perdido. Ele quer sexo - muito. Ela não tem tempo para isso. Ou tem, mas não tanto quanto ele queria.
Ao voltar mais cedo para casa após um dia qualquer, flagra sua mulher com Carol, amiga argentina. Dá-se início às dúvidas, e à história (de amor, que, lembre-se dura apenas 90 minutos). O rapaz começa a imaginar sua mulher traindo-o com a melhor amiga. E mais: passa a se envolver tanto com sua imaginação que se perde entre a realidade e a ficção. Começa a se apaixonar por Carol, argentina, dançarina de tango, leve – o oposto de sua mulher, mas tão decidida e independente quanto.
Se por um lado, o personagem deixa de escrever um romance, por outro ele começa a escrever seu romance. Sua vida passa a estar dividida entre o que é real e o que é imaginado. Ama as duas. E acredita que as duas se amam. Acredita que as duas o amam. A narração em primeira pessoa reforça o caráter duvidoso do romance entre as mulheres, cujas cenas aparecem apenas no imaginário de Zeca, e é um elemento imprescindível para a obra.
Dessa forma, cria-se um jogo entre o que o rapaz deveria fazer (inventar um romance!), o que ele está fazendo (inventando um romance) e como ele está fazendo (com sua própria vida). Os diálogos são rápidos, os conselhos dados por seu pai são primorosos e cômicos. A história vai passando, os minutos vão levando ao final do filme. Ao final da história de amor. Amor?
A forma como é conduzido o filme leva o público a rir da incapacidade de Zeca de seguir uma vida “normal”, esperada por um cara de 30 anos. Ele está perdido. É sinal da tal geração perdida. Não conseguindo inventar a história de seu livro e cansado com a sua própria história (o protagonista sempre foi atraído pelo suicídio, apesar de não apresentar um caráter suicida), ele começa a inventar a sua própria história. Começa a imaginar coisas. Apimenta sua vida imaginando uma traição de sua mulher com outra. Outra mulher. Melhor ainda quando começa a se envolver com a outra, sem que sua mulher saiba. Melhor? Até certo ponto. Afinal, histórias de amor duram apenas 90 minutos. E depois dessa historia de amor o que lhe resta? O livro. Empacado? Talvez. E a vida?
segunda-feira, 29 de março de 2010
Os incomodados não se mudam
Favela. É o que se mostra logo na primeira cena, na primeira imagem do filme Os Inquilinos, de Sério Bianchi. Barracos amontoados, que mesmo com a abertura da câmera, se mantêm praticamente infinitos, inúmeros. Extremamente parecidos, acabam por invadir a tela. Em um primeiro momento, pode-se pensar: “mais um filme retratando a pobreza brasileira...”. Não. Definitivamente não o é.
O enredo pode ser considerado, de certa forma, simples: três bandidos passam a morar na casa ao lado da onde vive a família central do filme - a dona de casa, Iara, seu marido Valter e as duas crianças. A proximidade de ambas as casas faz com que a vida da família seja invadida pelos novos inquilinos. Festas até madrugada, xingamentos e violência, passam a fazer parte da rotina familiar, sendo presente nos diálogos do casal, em suas reclamações, em seus medos, em sua curiosidade. O som proveniente dos vizinhos incomoda. As ações dos mesmos incomodam. Os vizinhos incomodam.
Valter, que trabalha carregando pacotes de maçãs e estuda no supletivo à noite, sente-se desconfortável desde o princípio. Mais do que isso. Preocupa-se com a possibilidade de aproximação dos estranhos com sua família, a qual ele, como progenitor, tenta – ou deveria - proteger. O filme é permeado pelo desconforto gerado pelos novos inquilinos, reforçado seja pela trilha sonora, pela fotografia ou pelas próprias cenas (algumas escuras, fortes, com sobre posicionamento de imagens em dados momentos, ou ainda de flashback).
Mais do que as dificuldades pelas quais passam os personagens, moradores de uma região pobre e periférica de São Paulo, há o sentimento de impotência rondando a película, principalmente na forma do personagem masculino. E o cansaço perante ela. Valter passa o dia inteiro fora. Teme pela morte de alguém. Dele, talvez. Insiste com seu patrão para ter sua carteira assinada, “nunca se sabe, ainda mais com filho pequeno pra criar...”. Incerteza do que possa vir a ser seu futuro.
Enquanto isso, os três rapazes passam o dia na base de cerveja: “não trabalham”, diz Iara, que começa a acompanhar a vida alheia – agora invadida e misturada a sua. Misturada até certo ponto, pois a própria personagem afirma e reafirma como forma de se convencer: “Nós não somos essa gente”. Não o são. As crianças vão para a escola, o marido tem seu emprego, a família vive numa casa de classe média baixa, herdada do pai de Valter, quem a construiu tijolo por tijolo.
Não são as armas, os tiros, a violência, a pedofilia ou a prostituição elementos fundamentais da trama. Eles, inclusive, passam em segundo plano. Não são os xingamentos, as palavras sujas ditas pelos bandidos, as principais palavras das falas do filme. Muito pelo contrário: não é o clichê da periferia que é mostrado. É um dilema superior, quase existencial. É a aflição de uma família sufocada pela presença ameaçadora de bandidos, pela presença do desconhecido. É o medo. A fraqueza de pessoas honestas. Desprotegidas.
Com isso, não se tem um filme de favela ou de pobreza, e sim um filme de dilemas de uma classe que tenta sobreviver em meio a intempéries. De um pai trabalhador, de uma mãe que passa o dia acompanhando o cotidiano dos bandidos para com mais certeza, afirmar: não pertencemos ao mesmo tipo de pessoa que eles.
Não são o mesmo tipo de pessoa que “eles”, os inquilinos, mas também não estão sozinhos em meio a essa presença. A cena final mostra Valter misturando-se aos outros moradores do bairro, a caminho do trabalho, como todos os dias. O plano picado, com a câmera alta, coloca-o como mais um, entre a multidão. Mais um que segue com suas dúvidas, suas certezas, seus medos e aflições. Mais um que segue com sua vida.
domingo, 7 de março de 2010
Refúgio
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010
Inspiração
- Não, você não tem nada de incompleto ou amassado. Só está um pouco sem ter o que escrever...
Pronto. Vou transformar isso em um diálogo para soar melhor. Assim não pareço um louco a resmungar sozinho pelos cantos. Estou acompanhado, por uma bela guria. E por vinho, ah, como eu gosto de vinho.
- Como sem ter o que escrever? Eu vivo disso, eu sou pago para isso. Então quer dizer que agora não tenho como viver nem pagar minhas contas.
- Não é isso, o problema é que você não se concentra e está muito exigente. Seus textos já foram bem melhores e os assuntos bem mais simples. Se tentar enfeitar muito dá errado. Ou se tentar falar alguma coisa que você não sabe, pior ainda.
- Então quer dizer que devo escrever só sobre algo que sei?
- É o que se espera, não? Ou você quer dissertar sobre a vida das algas marinhas no oceano índico?
- Não, nem sei se tem alga marinha lá.
- Então pronto. Fale sobre o que você sabe.
- Eu não sei de nada. Nem nada sei. Ou melhor, só sei que nada sei. Não foi Sócrates quem disse isso? Aí, ó, também não sei. Céus, que desgraça.
- Então fala sobre amor. Amor sempre dá certo.
Agora ela me vem com esse papo de amor. Até parece. Ainda mais dizer que sempre dá certo. Tem vezes que nem dar dá.
- Não sei falar sobre amor e se eu não sei, não tenho como escrever. Além do mais, puta assunto batido. Quantos não são os que falam de amor? Qualquer música sertaneja, qualquer propaganda de desodorante.
- Propagandas de desodorante não falam sobre amor. Falam mais sobre pegação, instintos animais e tal. Por que você não fala sobre a natureza?
- Impossível. Já nem tem mais natureza por aí. Estão acabando com tudo.
- Impossível é você, pelo que eu estou percebendo. Se você preferir, fique quieto. Melhor assim, para evitar falar besteiras.
- Você acha que eu falo muita besteira?
- Um pouco.
- Então posso continuar falando até que você ache que eu fale muita?
- Não.
Depois dessa, calei a boca, terminei meu vinho e fui dormir. Não dá pra discutir com ela.
terça-feira, 22 de dezembro de 2009
Leite Gelado
Dançar ele dança, assim, de vez em quando. E quando dança, dança tão bem que desliza pelo salão. Desliza e sua. Sua gelado e não quente. Suas mãos são frias. Já perguntaram se ele não tinha algum problema de circulação - ele dizia que não, quem mal circulava era seu jornalzinho da Associação de Moradores do Bairro. Ia de casa em casa, só, visto apenas por uma ou outra senhora entediada.
Quando criança, ia à escolinha. Adorava. Odiava quando fazia muito sol e tinha aula de educação física. Ele derretia. Depois, cresceu um pouco e passou a ir a barzinhos. Adorava. Odiava quando via uma menina muito gata. Ele derretia.
O que fazer?
Um deleite.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
Danada
Na rua,
em casa.
Com os outros,
comigo.
Na cama, no semáforo, no chão.
Nos olhos, nas bocas, nas mãos.
Nas brigas, nos abraços.
Nas surras, nos beijos.
A procurei em qualquer cantinho besta, perdida em qualquer lugar que fosse.
Na praia, no asfalto, no mato, em bares.
Com os pássaros, com os vermes -
Nada.
Não a encontrei.
Danada inspiração.
Ah. Não devo ter procurado direito. Se tivesse, com certeza, teria encontrado. Ou talvez foi em sua procura que a perdi. Não, não perdi. Ela que se perdeu de mim. Se perdeu?
[Talvez não. Afinal, inspiração não é dessas coisas que vem do nada - ela não vem. Ela já está em nós]
sábado, 7 de novembro de 2009
Praia Cheia

- Olha o picolé, picolé... Geladinho, baratinho!
- Tem de macadâmia?
- Oi?
- Macadâmia.
- O que é que tem?
- Tem?
- Tem o quê?
- De macadâmia.
- Tem picolé.
- Picolé de macadâmia?
- Como assim?
- Moço. Eu quero um picolé. De macadâmia.
- Senhora, não sei o que é isso não. Se parece com limão? Tem de limão!
- Menina, olha como você conseguiu ficar bronzeada! Que protetor você está usando? Bronzeador?
- É... Um baratinho, até, da embalagem marrom, aqui, oh, deixa eu pegar para você ver. Sabe que nunca pensei na diferença de protetor e bronzeador? Qual é?
- Um protege e outro bronzeia.
- Mas se bronzeia não protege?
- Deve proteger também.
- E se protege não bronzeia?
- Também, ué.
- Mas então qual a diferença?
- Ah, querida, agora eu não sei. Me empresta esse para eu passar?
- Essa areia está grudando em todo lugar, que horror. E esse sol de rachar! Como a praia tá cheia hoje, meu deus.. Até parece que ninguém nunca viu sol... Também 40° não tem nem como ficar em casa, só com ar condicionado. E quem tem, né? Como eu queria estar numa piscina agora... A gente podia ir para a casa da tia Sandra dar um mergulho, hein? Essa praia está insuportável. Não tem nada para fazer, e essas crianças aqui do lado não param de berrar.
- Estão te chamando para jogar frescobol, lá na outra ponta da praia.
- Ha-ha.
- Manhê, vou nadar.
- Nada, mas toma cuidado!
- Com o quê? A água?
- É, o mar.
...
- Mãe, por que vc falou para eu tomar o mar com cuidado? Foi horrível! Tem muito mar e é salgado!
- Filha, para que cavar um buraco tão fundo?
- Quero ver se acho petróleo.
- Mas não é assim que você vai conseguir.
- Mãe, você já achou petróleo algum dia?
- Não.
- Já tentou?
- Não.
- Então como você sabe que assim eu não vou conseguir?!
- A gente podia tomar uma água de coco, né.
- É, podia. Passa uma cerveja.
sexta-feira, 25 de setembro de 2009
Amor eterno... Ao Corinthians
Seu relacionamento era assim: vira e mexe tinha que dividir sua atenção com a redonda, aquela mesma que 22 jogadores correm atrás, no campo, e todos os outros 92,4 milhões de homens brasileiros acompanham – seja nos estádios ou pela própria televisão.
Não tinha jeito. No começo até entendia, chegou a ir uma ou duas vezes no Pacaembu com o namorado, para ver se conseguia se animar com a energia do estádio. Não dava – chegava suada em casa, depois de muito empurra-empurra e muito homem passando cantada furada em seu ouvido. Resolveu que o melhor jeito era deixá-lo ir sozinho.
Ele seguiu a risca: passou a ir a todos os jogos, mas sem ela. Quando não ia aos estádios (apesar de ter contato com uns cambistas, muitas vezes os ingressos acabavam rápido e os preços eram absurdos), assistia-os nos bares. Aliás, preferia até o bar ao estádio: pelo menos lá ele podia beber, enquanto via os jogos. E era com cheiro de cerveja que voltava para casa.
A paciência dela frente aos jogos era cada vez menor. Chegando tarde em plena quarta? Não dava. Não dava mesmo. Ou ele chegava extremamente alegre e feliz – o que era bom, mas ter que agüentar o ritmo dele à meia-noite, após um dia de trabalho esgotante para ela, era muito; ou, vinha para casa irritado por ter perdido mais uma partida – e aí ai dela se comentasse qualquer coisa a respeito.
Além do horário, da cerveja e do estado emocional do rapaz após os jogos, outra coisa que a irritava profundamente eram as possíveis companhias. Com certeza deveria ter mulher na jogada. Não estavam na moda as tais marias-chuteira? Ele negava e ainda provocava: se fosse para ela estar preocupada com as possíveis marias-chuteira, deveria estar preocupada também com marias-gasolina, marias-parafina, marias-palheta, marias-maçaneta, marias-vão-com-as-outras... Não que ele fosse jogador de futebol, tivesse um bom carro, surfasse, participasse de uma banda de rock ou ligasse para mulheres muito fáceis (afinal, para conquistá-la, levou meses) e para aquelas que não têm opinião. Falava tudo isso puramente para deixá-la nervosa.
Ela, que nunca havia se considerado ciumenta e impaciente, ficava cada vez mais incontrolada quando o assunto era futebol. Não podia imaginá-lo pelas ruas urrando “Timão ê, ô!”, não agüentava ter que lavar aquela camiseta branca e preta, não queria mais nem ouvir o nome do Rona... Deixa pra lá.
O jeito foi terminar. Logo que o Corinthians empatou com o Coritiba, resolveu: não continuaria mais com ele.
Agora, nada mais da torcida da gavião, do Pacaembu (corintianos acham que o Pacaembu é deles), das faltas, dos pênaltis, de futebol. Nada. Começou a namorar um tenista.
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
Jogos de Azar
Dona Arlete passou a vida inteira reclamando de seu marido, Seu Ferreira. Não eram só os problemas de casa, como largar roupa suja no chão ou não abaixar a tampa da privada, que a afligiam. Havia um pior: o vício no jogo.
Todas as tardes, o marido saía do trabalho e nem passava em casa. Ia direto para a praça, onde participava de disputas incríveis de dominó. Quando ganhava, deixava o lugar e rumava para o bar, afinal, precisava comemorar. Quando perdia, também - lá sempre havia alguém aguardando para ser sua dupla no truco, jogo em que era invicto e no qual, com certeza, poderia ter o gosto da vitória.
Seu Ferreira sempre fora um cara de sorte - menos pelo fato de não ter tido um menino, e sim três meninas. Ele nunca teve problemas financeiros e a única coisa que o jogo lhe provocava eram brigas com Dona Arlete.
A raiva pelos jogos perdurou na mulher até o dia em que um bingo, ao lado de sua casa, fora aberto. Não deu outra. Começou a freqüentá-lo. Talvez assim causaria algum tipo de vingança ou, pelo menos, inveja no marido. "Lá tem uns moços jovens, bonitos, que sempre me dão sorte...", vivia dizendo. Seu Ferreira, no entanto, sabia: o recinto era apenas um lugar onde as velhinhas do bairro podiam fofocar e trocar receitas de bolo.
O tempo foi passando e Dona Arlete se tornou a freguesa mais assídua do local. Parou de limpar a casa, parou de fazer comida. Enfiava-se no bingo logo quando abria, e só saía ao ver o lugar ser ocupado pelas moças da limpeza. O segurança da casa a conhecia, a moça do bar também. O menino da roleta, então, nem se fale! Ela se sentia tão bem, tão querida, que sua família passou a suspeitar que ela estivesse mais feliz no bingo do que na própria casa.
Suas filhas começaram, então, uma campanha para a mãe deixar o local. Passaram a visitá-la com mais freqüência, traziam doces, levavam a mulher para o cabeleireiro, shopping e até para barzinhos na Vila Madalena. Não adiantava. Ela logo voltava para o lugar. Pegava o ônibus, saía a pé, mas com suas filhas ela não ficava. Nem com Seu Ferreira.
Depois de anos sem deixar de ir a uma partida de dominó, o velho percebeu o ápice do problema de sua mulher quando precisou voltar para casa após o trabalho e fazer sua própria janta - justo no horário de seu jogo. Estava ele, na cozinha, se aventurando com batatas cozidas enquanto os colegas se divertiam no dominó. Não podia agüentar tal infelicidade. E sua mulher lá, jogando.
As contas começaram a deixar de ser pagas, a casa passou a ficar imunda. Seu Ferreira contraiu uma doença por causa do pó e não conseguiu mais sair da cama. Deixou o dominó. Deixou o truco. Mesmo assim, Dona Arlete não deixava de ir ao bingo (deixou de ir à missa, mas nunca ao bingo).
Os problemas de saúde de Seu Ferreira se agravaram, e no dia 5 de maio de 2007, ele faleceu. Mesmo dia em que o bingo de Dona Arlete foi interditado pela subprefeitura de seu bairro. A liminar de seu funcionamento foi cassada. Do dia para a noite, Dona Arlete se viu sem chão – perdera numa só rodada, toda a sua vida. Não queria mais saber dos filhos, não queria mais saber de comer, nem conversar mais com as amigas. Inclusive, passou os últimos anos sem dar satisfação à família: não queria saber de visitas.
Nesta última quarta-feira, dia 16 de setembro, suas filhas voltaram a se animar com a mãe: a Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados passou a aprovar a volta das casas de bingo no país. Fazia tempo que elas não se alegravam com fatos políticos... Talvez agora a mãe pudesse ficar mais feliz.
- Alô? Mãe? Está me ouvindo? Mãe, você viu que parece que vão abrir os bingos?
- Sim, mas não me interessa mais.
- Como assim, mãe, você vai poder rever seus amigos...
- ... Há muito tempo deixei o bingo. Não gosto desses tipos de jogos.
- Como assim, mãe? Mas eu ouvi dizer que a senhora ainda estava apostando nos jogos, em outros lugares, mas estava... Então não é verdade o que Dona Conceição, sua vizinha, disse?
- Não, é verdade, sim. Agora sou campeã de dominó. E de truco.
E Dona Arlete continua jogando, até hoje, na praça, no bar – mas claro, somente depois de ter arrumado a casa e preparado a comida.terça-feira, 15 de setembro de 2009
Pêra
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
Pessoas e pessoas
Existem pessoas que não se preocupam em falar para outros o que Fulano ou Beltrano fez. Não se preocupam em espalhar fofocas. Aliás, pouco falam sobre pessoas - preferem colocar em pauta assuntos como animais, árvores, idéias, músicas e livros.
Existem pessoas que não acordam pensando nos terríveis afazeres domésticos - e acabam até se divertindo ao lembrarem do que terão que fazer durante o dia. São aquelas pessoas que não passam a vida reclamando do que têm que fazer, do que não têm que fazer, do que fizeram, do que deixaram de fazer e pior: do que os outros têm que fazer, do que os outros não têm que fazer, do que os outros fizeram, do que os outros deixaram de fazer.
Existem pessoas que sabem sofrer na medida certa. Certa a ponto de aprender. Depois que aprendeu, não tem porque sofrer. Já foi. São pessoas que não fazem do seu penar um penar alheio - não jogam seu fardo de culpa nas costas dos outros para assim, se sentirem aliviadas. Se sentem dor, aprendem com ela. Não tentam passá-la aos que estão ao seu redor. Não tentam se colocar em posição de vítima. São corajosas, essas pessoas. Ah, como são!
Existem pessoas que não veem porquê remoer erros passados ou mais, viver em tempos que não os presentes.
Enfim, são, normalmente, pessoas que se afastam de intrigas. Também são queridas. Pessoas queridas não precisam se auto-afirmarem para se sentirem amadas. Elas simplesmente sabem que o são e são porque demonstram o querer aos outros. São porque amam os outros.
Esse tipo de pessoa costuma fazer piada da vida - e não da menina gordinha ou do menino de óculos. Imagine elas subjulgando alguém, colocando um terceiro em ridículo, inventando mentiras a respeito dos outros! Não, não. Pessoas assim não fazem isso.
Pessoas assim são difíceis de encontrar.
Você, definitivamente, não é uma delas.
sábado, 5 de setembro de 2009
Sei
Tudo bem, entendo você quando diz que eu deveria andar mais a pé, fazer mais exercício. Não, eu não vou mais voltar a fazer volley. Nem ballet. Também entendo quando você diz que tenho que me alimentar melhor. Almoçar direito. Jantar. Eu tento. Tento jantar sempre que chego - às vezes você já está dormindo, e eu esqueço de ver o prato que deixou preparado para mim no microondas. Esqueço, simples assim. Sinto meus olhos tão cansados que abafam o barulho do meu estômago. Ou sinto tanta vontade de vir para meu quarto que nem passo pela cozinha. E muitas vezes acabo nem dormindo assim, tão rapidamente.
Aliás, você tem razão. Eu não posso ficar acordada até tarde, dormir pouco. Não quero cultivar olheiras. Mas... O dia é tão curto para mim que preciso da noite. Não tem jeito. É como sair à noite. Sim, a essas horas?, abro a porta, dou-lhe um beijo, pego o elevador, entro no carro que me espera lá embaixo. É que eu preciso da madrugada, também. Preciso de muitas coisas. Eu sei que você sabe disso, e eu sei que justamente por isso me acha meio mimada. Não sou. E se fosse, seria culpa sua. Olha aí, já estou culpando você, que tanto me quer bem. Que tanto se preocupa e me sufoca.
Sim, muitas vezes sinto sufocada pelas suas perguntas. É só preocupação, não é? Entendo. E as cobranças? Tenho que estudar, manter as amizades, visitar os parentes, comer direito, me arrumar, ler todos os livros, dirigir e... Fazer exercícios! Não dá, não consigo e sei que não consigo. Sabe, eu já tento fazer todas aquelas coisas que eu quero. Se tiver que fazer todas as que você queria ter feito quando tinha minha idade serei consumida mais do que já sou pelo monstro dos dias que passam correndo.
Quanto mais coisas fazemos, mais rápido o tempo passa. Eu sei que quero fazer muitas coisas (por mais diferentes que sejam do seu querer). Eu sei que muitas daquelas que você quer que eu faça é para meu próprio bem. Eu sei que tenho que passar protetor solar, tenho que comer frutas, tenho que ir no médico, no dentista, tenho que ligar para o Fulano que me ligou , tenho que visitar a Cicrana, tenho que arrumar o quarto, tenho que voltar às aulas de línguas, tenho que começar a fazer algum exercício, tenho que deixar de fazer besteira, tenho que deixar de falar besteira! Eu sei, eu sei.
Eu sei que você acha que eu acho que sei de tudo.
Mas isso... Não, não sei.
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
Nós
Numa tarde abafada de pleno agosto, nos pegaram. Nunca havíamos nos olhado. Cada mão, agarrou-se a um de nós. Apertou-nos - e fez apertarmos nossas vistas para confirmarmos aquilo que víamos: outros eus. Iguaizinhos.
Nos víamos, porém ainda não éramos nós. Éramos dois eus, que suspeitavam se tornar um nó, mas só suspeitavam. (Era aquela suspeita bandida que surge quando os olhos apertam os corações - os quatro olhos, apertando os dois corações diferentes. Diferentes-mas-nem-tanto, afinal, estavam prestes a virar um só. Um nó.)
Nos enrolaram. Nos envolveram. Nos apertaram. Tão firme que ficamos sem ar. Nos deram um nó. Dois. Três. Nos firmamos, nos firmamos. Ou nos amarramos? Nos amarraram.
Nós viramos nós. Assim continuamos por um longo tempo... Presos, feito aqueles de marinheiro. Feito aqueles na madeira - colados ao jatobá.
Foi nessa época quando nos tornamos nós cegos de tanto amor. Além de cegos, insuportáveis. Ninguém nos aguentava mais: "estão muito fortes! Não consigo nem soltar! Olha que apertados... Sufocante!"
Tentaram nos separar, mas éramos tão apertados que garfo nenhum conseguia tal feito. "Vou buscar uma tesoura!", ao ouvirmos a frase, demos um nó na garganta. Imediato. Tesoura?!
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As lâminas afiadas se aproximaram de nós. Dos nós. As mesmas que já haviam rasgado cartas de amor, sem darem tempo de serem entregues, sem permitirem um sorriso doce ao saírem do destinatário.
Elas estavam ali, nos encarando. Juntinhas, cínicas, nos observavam. De repente, abriram, brilharam e nos deram um abraço gélido. Simples e rápido. Toda a força que tínhamos esmaeceu-se. Toda a dificuldade para nos soltarem se foi. As linhas se estiraram. Fomos nos desfazendo, nos soltando, nos quebrando.
Conseguiram. Elas, as lâminas, desfizeram os nós (desfizeram-nos). Quero dizer, ela. Cruel, fria e que nem marca tinha - nessas horas você percebe a importância das marcas para cortarem as relações: nenhuma. Elas aparecem depois.
Ela veio como quem não quer nada. Estava muito bem amolada. Melhor seria se estivesse cega, ou se a mão que antes nos unira, agora não se encaixara nela para nos romper.
Subitamente, dilacerou-nos. E foi de tal modo que nunca mais nos vimos. Cortou qualquer ligação que houvesse entre as pontas. Nosso fio já não era o mesmo. Diminuímos.
Terrível foi o dia em que éramos nós e voltamos a ser apenas eus. Terrível. Passei a ser somente um pedaço. Assim, incompleto.
Maldita tesoura.
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
Pepê e seu jeito estranho de fazer as coisas
Na escola, por exemplo. O normal é querer sentar no fundão (claro que existem aqueles que gostam de sentar na frente, mas no fundo, no fundo, todos acham o fundão mais legal) e não querer de jeito-maneira-alguma ser chamado para resolver equações ou aplicar fórmulas matemáticas na lousa.
Pepê adora. Senta em qualquer lugar - não se importa - e sempre que é chamado para a lousa faz questão de não só tentar responder as coisas (digo tentar porque na maioria das vezes ele não sabe, mesmo), como também imitar os professores dando aula. Os colegas gostam, acham engraçado. Já os professores... Dona Ivete, por exemplo, fecha a cara.Uma vez até mandou-o sentar e o ameaçou a tirá-lo da sala. Mas Pepê percebeu o sorrisinho que ela escondia de gosto por tê-lo ali. Ficou na dele, e simplesmente, continuou escrevendo com o giz, os números.
Aliás, ele é um dos poucos que percebem sorrisinhos alheios. Quando os outros notam, ele já viu faz tempo. Antes mesmo dos sorrisos se mostrarem. Isso era bem estranho - ainda mais quando comentava para alguém: "Olha só, o Seu Geraldo, vai dar um sorrisão daqui a pouco...". Não acreditavam, óbvio. Idéia maluca, a dele! Até que, de repente... Peraí! Não é que Seu Geraldo está sorrindo?!
[Leia a parte 1 antes, com muito gosto, aqui]