sexta-feira, 22 de maio de 2009

X e Ypisilon

Ele, definitivamente, não combinava com ela. Ele gostava de conta; ela, de palavras. Quando nervosa, ela se punha a escrever. Ele, a fazer exercícios. Físicos. Ela amava barrinhas de cereais. Ele as detestava - preferia sanduíches gordurosos e refrigerante. Ela não suportava o gás da bebida (e isso incluía da cerveja, coisa que ele vivia tomando com seus amigos).

Ela amava música brasileira. Ele odiava a fonética do português daqui. A letra dele era feia. Dela, bonita, caprichada e redondinha. Ele sempre, mas sempre mesmo, conferia o troco - ela, perdera várias moedas por não conferi-lo.

Se um lápis parasse na mão dela, rabiscaria em qualquer lugar. Ele o faria girar entre os dedos. Nunca ia ao cinema sozinha. Sempre. Sempre usava tênis. Nunca. Vinha de uma família grande, cheia de primos e era a irmã mais nova. Ele era o mais velho e nunca conhecera os avós. Quando pequena, adorava desenhar. Ele odiava aula de artes.

Exatamente humana. Humanamente exato.

Eles não tinham nenhuma afinidade em comum.
Nem amigos iguais.
Nunca, também, frequentaram os mesmos lugares.

Eles nunca se conheceram.
E viveram felizes para sempre.

[Você achou que eu terminaria com um "os opostos se atraem"?]

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Morte

Em vida, a morte é algo difícil de se digerir. Principalmente, por ser ela que, lentamente, digere a vida. Vai aos poucos minando o que resta do ser. Leva, de uma hora para outra, quem menos se espera ser levado. Leve. Ou o contrário. Carrega, ainda que em vida, aquele que sabe ser por ela carregado. Pesado.

Começa junto ao nascimento: não tem jeito. Tudo que nasce está fadado a morrer. Fatalmente isso acontecerá (e aí "fatalmente" entra como melhor advérbio possível para se exprimir isso). Inexorável, óbvio. A morte aguarda finalmente o dia em que resolve aparecer. E esse dia é certeiro.


Quando aparece, não transforma o ser em pó; mas em lembranças, em memórias de outras pessoas. Parte daquilo que um dia foi, continua sendo - mas em outros. Canções, momentos, frases, risos. Guardados em diferentes corações, aquilo que um dia já foi de um só.

Não adianta remoer a dor da perda. Nem adianta manter o espasmo da notícia. Aliás, nada adianta depois que tudo se foi. O difícil é acreditar.

Não dá para crer em algo desconhecido. Não dá para pensar que, de fato, aconteceu. Impossível aceitar a possibilidade de nunca mais ouvir aquela voz, de nunca mais olhar àquela expressão. De nunca mais tocar, ou ser tocado.

Uma gravação, uma foto, um vídeo. Ok, são resquícios do que se foi. Mas nunca, nunca, serão capazes de trazer de volta a matéria. Trazem de volta, e à tona, as lembranças. Quantas músicas não ouvimos daqueles cujas vozes não criam outras palavras? Quantas fotos de seres que agora se esvaem e não mais podem ser vistos? Quantos escritos deixados? Provocam imensa dor. Provocam imensa nostalgia. Provocam a presença da ausência e pior: a certeza da ausência. Provocam saudades.

De certa forma, nos deixamos, nos marcamos em outros - sejam objetos ou pessoas - como forma de se perpetuar. De não sermos esquecidos, de não cairmos no breu infinito daqueles que já não fazem parte da memória de ninguém.

Muitas vezes já pensei que o medo da morte seria mais um medo do esquecimento do que da própria perda de vida. Ninguém quer adentrar ao desconhecido, por mais corajoso que se diga ser. Somos, todos, carentes e covardes. Ninguém quer, também, que uma existência tão sem sentido, como parece ser, muitas vezes, a da vida, culmine em uma insensatez perversa.

Valer a pena é o que se divulga por aí. Valer a pena. Cultivar a felicidade. Ser constante, presente, pulsante a todo momento. Exalar energia, absorver pelos poros todas as mais singelas manifestações do mundo. Todas. Tudo no infinitivo. Ou imperativo. Nunca, mas nunca, no gerúndio - não temos tempo para manter ações constantes.

Viver tanto e tudo como forma prática de não se lembrar da morte. Escrever sobre ela, então, pior ainda! Onde já se viu?! Falar de algo tão pessimista, tão sombrio, tão gelado e que agora mesmo foi capaz de trazer um arrepio às espinhas? Um sopro frio às costelas...

Aliás, como pode você, menina, com tanta saúde e vida pela frente parar e dedicar seu tempo para escrever sobre aquela coisa a que estamos fadados e, que, na melhor das hipóteses, não deve ser dita. Ou melhor, pior ainda você, com tantas idéias pela cabeça, tantas obras-primas a serem lidas, tantos filmes de diretores conceituados a serem vistos e mais: tantos trabalhos a serem feitos (o fim do semestre se aproxima, você vai ficar aqui lendo e deixando tudo para última hora?!), gastar um tempo do seu dia lendo alguém falar da morte.

Gastar seu tempo. O tempo vai, foi, e, já falei: perdeu-se agora mesmo, neste instante. Tempo da sua vida acaba de passar e você lendo sobre a morte. E eu aqui escrevendo. Imagine, que atentado faz essa garota, dizendo que morreremos! Acusando-nos à morte, assim, tão explicitamente.

É... Há quem a espere. Há quem prefira esquecê-la. Há quem festeje seu dia ou quem em prantos se afogue. Há quem a aceite. Há quem a negue. Não importa. Ela virá para todos. E para tudo. Falemos ou não, ela tá aí. Ela chega numa conversa inesperada ao telefone.

De repente, não mais que de repente, somos abalados por um "lembra de fulano? Pois é...". E somos abalados justamente pela exigência do viver, que apita a cada instante: será que teremos tempo suficiente para fazermos tudo que nossas cabeças malucas se propõem a fazer? Será que ele teve tempo suficiente para me mostrar tudo que eu seria capaz de perceber?

Será que teremos tempo para a poesia da vida enquanto escrevo aqui, em prosa, a morte?

Breve - assim parece ser a vida.
E, também, o instante da morte.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Leia-tudo-continue-lendo-leia-leia-aí-embaixo

"Garagem";
"Rua Maria Alfreda";
"Aluga-se apartamento";

"Velocidade KM/h";
"Delicie-se com o novo suco HuuumAh";
"Contratamos faixineira".

"Feira de filhotes!";
"Doe sangue!";
"Prefeitura de São Paulo: trabalhando por você";
"6245 - Pça. da Bandeira".

"Novo empreendimento imobiliário: consulte os preços acessíveis!";
"PARE";
"Não pare o carro no cruzamento";
"Estacionamento 24h";

"Suco
Picolé
Água de Coco
Tapioca
Caldo de Cana
Pastel
Carne
Queijo
Pizza
Frango
Escarola";

"Entrada à direita";
"Identifique-se - tenha o RG em mãos";
"Sorria: você está sendo filmado";
"Térreo";
"Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar".

"Consultório dra. Maria Antônia";
"Mônica";
"Gelada Fria";
"Ah-ma-ga-li não sei co-mo vo-cê con-se-gue co-mer tan-to e não en-gor-dar";
"É mesmo?";
"Aliás... tem tanta coisa que a gente não consegue entender...";
"Ué, cadê meu pedaço de pizza?".

- Ai, mãe, vai demorar? Eu não consigo parar de ler tudo que aparece na minha frente!

Disse a menina que acabara de aprender a ler, com seus pés balançando e sentadinha no sofá a espera de ser atendida.

[E que continuou lendo tudo que aparece na sua frente, mesmo depois de anos]