sábado, 14 de agosto de 2010

Memórias

Que bom que você veio. Agora me conte. Fale-me da época em que você me conheceu, menina, pequena, com aquele vestido roxo cheio de florzinhas e se pendurando no brinquedo do parquinho. Vai, eu sei que você se lembra das tardes passadas juntas, brincando, rindo. Esconde-esconde, pega-pega... Conta-conta, eu quero saber. O que estou fazendo neste quarto branco? Daquele suco de uva que sempre manchava a minha roupa. Aqui as bebidas são horríveis. Das minhas bonecas. Dos bolinhos de chocolate que eu dividia com elas - mas quem acabava comendo todos era você. A comida é péssima. Faz tempo que não como um bolo. Dos meus bichos de pelúcia que te faziam espirrar. Tem um urso sentado naquela cadeira olhando para mim. Quem o trouxe? Você ainda tem rinite?

E do colégio? Como era aquela época? Eu cumprimentava o bedel? Falava com os professores? Tinha amigos? Como eles eram? Quais eram minhas maiores preocupações? Tentar entender matemática, suponho. Eu entendia? Quantas flores bonitas por aqui. Eu particularmente gosto das amarelas, lembram-me do sol, que a propósito não passa por aquela janela empoeirada.

Por favor, faça-me lembrar daquele dia em que não parávamos de falar, a aula toda, todas as aulas. Por que você está me olhando com essa cara? Por que você não fala nada agora? Falamos até na sala da coordenadora - que resolveu falar com nossos pais. Como tínhamos tanto assunto?

As provas. Prove-me que estas lágrimas em seu rosto não são por minha causa. Me explica como eu fazia para ir tão bem. Quer dizer... Eu ia bem, não ia? Eu sei que ia: até ensinava os outros - claro que essa era uma desculpa bonita para que eu aprendesse mais -, eu te ensinava. Você me ensinava. Ou tentava.

Enumere as vezes que jogamos baralho e eu perdi. Fácil: eu sempre perdia. Pra falar a verdade, nunca entendi a ordem do truco, que muda a cada rodada.
Podíamos jogar truco. Pena que meu corpo está preso nesta cama. Mas fingia.

Sempre fingi muito bem. Menos quando me apaixonei. Confesse-me o que pensou do meu primeiro amor, como eu fiquei chata naquela época. Como você aguentou meu monólogo, meu único assunto durante aqueles dias? Já sei: aguentou como está aguentando agora. Só eu falo. Continuo falando. Aliás, como ele era mesmo?

E do meu primeiro beijo... Como foi? Eu sei que você sabe. Com certeza deve ter sido o primeiro a saber. Beije-me, por favor. Da minha primeira batida de carro. Eu chorei? Do meu primeiro emprego.

Nunca imaginaria como você seria importante para mim. Estou me sentindo uma velha, caduca. Sou uma. Do meu casamento você não pode falar. Você não estava lá. Não te convidei. Nem do nascimento da minha filha. Do meu filho. Da minha outra filha. São três? Acho que sim. Do dia em que me separei. Do sofrimento que tive quando perdi meus pais. Quando me senti só e totalmente só no mundo. Onde você estava? Quando me enfiei no trabalho e não quis mais sair. Eu fiz isso? Das minhas bebedeiras, nem me lembre. Eu mesma não lembro.

Você é minha memória. Pare de chorar, não chore pelo passado. Você está chorando pelo passado, né? Diga que não é pelo presente, não é pelo presente! Em quem sempre confiei. Como nos conhecemos mesmo?

Oh, meu deus. Quem é este homem que está me encarando, próximo demais a minha cama. Será que não é hora de tomar remédio?
Eu te conheço? Quem é você? Não se aproxime, pare por aí, não se aproxime! O quê? Visita? Não te conheço. É mentira! Você é um estranho! Saia daqui, por favor. SAIA.

- ENFERMEIRA!




domingo, 8 de agosto de 2010

Vidas

E de repente, ela envelheceu. Não era dia do seu aniversário. Mas estava velha. Se sentia velha. Olhava para o espelho e suas rugas denunciavam por quanto já havia passado para ser o que é hoje (apesar de não saber muito bem o que era). Olhava para o lado da cama e via um senhor, idoso e com problemas cardíacos.

Ele já era velho quando se conheceram. Ela era moça. Perdida. Fugira da casa dos pais aos 16. Não aguentava mais a mãe bipolar - e viciada em remédios. Mudou-se para a casa da tia (lésbica). Saiu. Virou hippie. Cheirou, bebeu. Dormiu em qualquer lugar. Inclusive com o velho - que tinha uma bela casa na praia, dava festa para intelectuais e era... Casado.

A mulher dele se matou. Na frente dela. Com um tiro na boca. Seu fantasma a acompanhou por toda sua vida. Agora tinha que fazer o homem por quem a outra se matara feliz. Ou não conseguiria ser feliz. Tentou ser a melhor esposa possível. Vivia para ele. Por ele.

Até virar mãe, quando passou também a viver para os filhos. Agora eles eram grandes.
Crescidos e vacinados. Não precisavam mais dela. Um deles, rapaz estudioso. A outra, uma menina rebelde e independente. Não conseguia entender a vida da mãe, a via com nojo: era submissa, não trabalhava. Vida inútil. Dona de casa. Sobrevive às custas do marido. Sobreviveu às custas do marido. A vida inteira. Inteira?

Inteira da filha, pelo menos. Desde que nasceu, viu a mãe em casa. Levando-a para a escola. Buscando-a. Servindo o almoço. Viviam bem, afinal. O pai era dono de uma editora. Não precisavam ter outra pessoa trabalhando para o sustento da família. Sustento financeiro, digo.
E emocional? O que era ela? O que era sua vida? Para a filha, uma fracassada. Mal sabia que... Mal sabia por tudo que tinha passado. O que tinha passado? Tinha um passado?

Para os outros, era um enigma. Seu presente, passado e futuro eram um mistério.

Até que... O marido morreu.

E ela renasceu. Estava nova.

Ele se foi. E junto a ele, seu presente opressor. Seu passado escondido. E seu futuro óbvio.

Libertou-se.

Do quê?

[Ok, se você já viu A Vida Íntima de Pippa Lee, reconheceu a história. Se você não viu, eu acabo de tirar grande parte da graça do filme. Assista se quiser. E já aviso: o final é tosco]


terça-feira, 3 de agosto de 2010

Gata na cama

Todos os dias, depois que deito, uma gata surge em minha cama.

Não ouço ela chegar.
Sinto.
Vem em cima de mim.
Caminha sobre meu corpo.
Pede por carinho.
Deita.
Ouço sua respiração.
Dorme.
Durmo.

... Quando acorda, vai comer sua ração e fazer suas necessidades em uma caixa de areia.