terça-feira, 26 de agosto de 2008

Sem Passar


Parada sob o ponto de ônibus, cuja cobertura poderia protegê-la de chuvas verticais mas não a protegia do sol escaldante da tarde (que insistentemente batia em sua cara, forçando-a a formar rugas precoces), observava atentamente o ônibus imaginário, único a não passar pela rua.

Do outro lado, via um espelho errado: ao invés de ter seu reflexo, o ponto era cheio. Vazio. Cheio. Vazio, novamente. Lá passavam ônibus.

Chegar no lado oposto ao seu sempre era mais fácil. Seguir o caminho que todos seguiam era rápido. Sem problemas. Mas ela não devia, não podia e nem queria. Então, esperava.

Carros com músicas altas - acabara de ver um com vidros abertos, braços para fora tocando funk -, caminhões fazendo entregas na farmácia ou no mercadinho, crianças formando fila para a barraquinha de hot dogs (a melhor das redondezas), mulheres caminhando em direção ao banco.

A vida não parava, e ela ali, parada. Em vão, virava seu olhar para a esquerda - alguma hora veria a carcaça laranja aparecer no horizonte. Nada.

Ao lado do ponto tinha uma igreja - seu relógio. Minutos passavam, mas os sinos não badalavam. 5, 10, 15, 20. Nada. Fiéis faziam o sinal do espírito santo - seja de dentro do carro, ou a pé. Ela, nada.

Atrás da igreja, um colégio. Era hora da troca de turmas - pequenos saíam gritanto, brincando, enquanto adolescentes com fones nos ouvidos andavam em bando, conversando. Um ou outro casalzinho. Fofocas, músicas, penteados, camisetas, risadas tímidas.

Ela era eles. A mochila a denunciava. O all-star nos pés também. Estudante. Igualzinha. Sentia ser outra, mas com certeza era vista também como tal. Todos queriam ser outros. Todos buscavam a diferença. Ela queria ser outra (estava na faculadade!), mas imperceptivelmente era a mesma.

Era o mesmo que eles. Ela era eles, esperando a aula começar. Esperando o ônibus passar. Ali, mal passada. No ponto.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Sol de Lantejoula


Sabia que era apenas uma válvula de escape brasileira - que associada à dupla praia e futebol, tornava-se o "trio-pronto-para-turista" - mas estava com vontade de carnaval.

Cansado da tal rotina, e sabendo que ela devia sentir-se cansada de ser sempre a acusada de ser culpada pelo mal-humor dos mal-humorados (afinal sempre quando uma nuvem negra passa a rondar, culpa-se a rotina e atribui-se a ela o adjetivo "massacrante"), sentia falta de cores e risadas pelas ruas.

Queria sair por aí; ver crianças correndo, satisfeitas com os dias em que jogar água com tinta nos outros era permitido. Queria ver confetes e serpentinas acumulando-se nas sarjetas. Queria ouvir o casal vizinho reencontrando o novo amor - ou reinventando aquilo que os anos desgastara.

Queria ligar a TV e finalmente ter todos a sua volta concordando que "passa sempre a mesma coisa em todos os canais" - algo que embora fosse comum todos os dias, poucos notavam e apenas quando explicitamente eram os sambódromos que estampavam as telas é que se percebia a falta de opções televisivas.

Queria a felicidade mascarada com plumas e adereços. Queria uma fantasia, queria ser quem ele quisesse, sem julgamentos pré-concebidos. Queria seguir a sua vontade, vontade de vida de festa, de ritmos, de brilhos. Queria amar, amor, beijos, corpos. Queria a mulata, os clichês, as lantejoulas.

Estava a ponto de sair do trabalho, largar o computador, pegar uma cerveja e andar a toa, conversando com aqueles que, como ele, também passeavam sem direção pela rua.

Ia sentir o sol de fevereiro batendo no rosto em pleno agosto. Ia olhar as fantasias das meninas, ia fantasiar-se com elas, em uma mistura de encanto e cantos. Ia entrar na roda, ouvir um samba, esquecer dos tais problemas.

Esquecer da mulher, do chefe, da mãe, da tia que também esqueciam dele. Lembrar, apenas, do seu eu, egocentricamente, servindo de reflexo ao país: a toa, feliz, com vontade de nada e de tudo.


Tinha vontade de apenas se deixar levar, seguir o bloco, pular na avenida, cantar, dançar. Sem diferenças ressaltadas. Vontade, somente, de carnaval.

(des)Saberes


Quem sou eu para falar com tanta convicção sobre o passado, presente e futuro, nessa mesma ordem, juntando tudo ou misturando?

Quem sou eu para opinar sobre a vida alheia, aconselhar com anos de sabedoria, com o peso da experiência, com a notabilidade de uma bem vivida?

Tem vezes que baixa uma autoridade em casos amorosos, em problemas profissionais ou em discussões familiares e eu, realmente, fico sem entender ou saber explicar para mim mesma qual seria sua procedência - embora explique e palpite convencida de meus achismos como uma grande doutora em qualquer assunto (mas também em nenhum).

É complicado, e mais um mal-estar para a lista da sociedade: o saber que sabe tudo; a arrogância dona da verdade; a verdade escondida no inconsciente mas que só aparece disfarçada de 'idéias só da cabeça de alguém'.

Ah... Vai saber!

sábado, 23 de agosto de 2008

Espera


Reclamava da falta de olhos nos olhos mas desviava os seus sempre que se sentia incomodada. Nunca se sabe: o estranho que a olhava poderia roubar sua alma, entrar em seus pensamentos, descobrir seus segredos... Na verdade, nem ela era capaz disso.

Quase não sabia seus próprios segredos. Raramente entendia seus próprios pensamentos. Sua alma, perdida, era um poço infinito. Não era medo de ser exposta. Era pura covardia. E egoísmo - vai que ele descubra coisas que ela nunca antes descobrira?!

Não tinha paciência. Queria tudo agora, neste instante, sem desperdícios ou demoras. Não suportava a solidão. Se sabia que alguém estaria a caminho, os segundos a sós se tornavam minutos, milênios.

Ligava. Mexia inutilmente no celular, apertava os botões, revia mensagens antigas, apagava as inúteis. Onde você está? Olhava ao redor na esperança de encontrar alguém chegando, pequeno, distante. Mal conseguia enxergar - maldita miopia!

Odiava a espera, o tempo que parecia lentamente desnecessário, perdido, desperdiçado. Odiava sentir-se sozinha. Era uma dependente independente. Pseudo auto-suficiente. Queria saber de todos, possuí-los, para que pudessem completá-la. Reclamava da falta de privacidade mas se expunha na Internet, em blogs, orkuts, palavras virtuais, verdadeiras.


Exigia seu espaço, enquanto usava também o dos outros (as mãos sempre serviam como complemento da fala que não se bastava. Suas palavras não eram suficientes por isso uniam-se a elas gestos italianamente exagerados).

Via o céu parado em seu imenso azul. Um pássaro perdido rasgando-o. O relógio e seus ponteiros. As horas. As folhas amarelas voando.


Pensava em si mesma. Pensava nos amigos, nos passantes, no passado. Ouvia conversas alheias de uma roda de pessoas felizes, despreocupadas (pelo menos assim pareciam). Vou conversar com elas. Sentada, não queria sair do lugar. Tinha preguiça, mas as pernas, inquietas, balançavam de um lado para o outro. Seus pés não tocavam o chão.

Em meio a tantas coisas nesse vácuo da espera, finalmente, sentiu o aconchego da voz conhecida. Um sussurro (para não assustá-la na volta para a realidade de fora de sua cabeça) enchera seu corpo de alegria. Eram palavras magicamente comuns, capazes de fazer seu dia:

-Cheguei. Demorei muito?



Sei lá, Sabe?


Tem dias que a gente acorda meio assim, meio assado, bem com frio.

Tudo cinza, dor de cabeça, muito pra fazer sem nada de começar. Ou não tem nada para fazer e muito para começar.

São aqueles dias de verão/inverno, inverno/verão: eu espero o calor e vem o frio, engraçadinho, querendo me encapotar. Ou vice-versa: chega o calor querendo me deixar de pernas de fora. Palhaços. Acham que me enganam... Acham e conseguem.

Dias assim que me deixam desanimada e com vontade de fazer tudo inclusive nada de nada.

domingo, 17 de agosto de 2008

Esquizofrenias Divagadas


-Oi, tudo bem?

-Oi... Boa noite!

Sim, conversas de elevador são realmente estranhas - isso quando não envolvem óbvias análises metereológicas.

O acontecemento foi o seguinte: eu voltava sozinha da garagem, perdida em pensamentos dentro do cubículo quando ele entrou para subir apenas uns dois ou três andares. Sim, dois ou três andares: uma injustiça. E não só para mim.

Por que injusto? Três são as razões: primeiro, injustiça com as pobres pernas flácidas dele, por deixá-las imóveis para evitar alguns lances de escadas. Segundo, com o próprio elevador, que passou a trabalhar gaguejando pelos andares. Terceiro, uma injustiça
temporal - sim, encontros como esse são curtos o bastante para que se possa desenrolar qualquer diálogo, mas ao mesmo tempo longos demais para que se pare apenas no "oi, tudo bem boa noite bom dia tchau tá calor".

Como se não bastasse a injustiça, o simples fato dele me perguntar se tudo estava bem e eu responder com um esquizofrênico "Oi... Boa noite!" mostra que alguma coisa está errada. E não só comigo.


Eu simplesmente não respondi se tudo estava bem porque sabia que mesmo se não estivesse eu diria "Tudo, e com você?" e aí, além da tentativa de manter uma conversa frustrante para passar um tempo que nem deveria existir do jeito que é, estaria enganando a mim mesma e a ele - pobre coitado que encontraria uma mentirosa de elevador.


Tudo bem, eu entendo que a pergunta não passa de uma mera formalidade ou de uma singela forma de demonstrar educação, mas será mesmo necessária? Será que essa automatização das perguntas não apaga a espontaneidade - mágico instrumento capaz de criar situações ou diálogos surpreendentes no nosso cotidiano?


O verdadeiro problema, no entanto, não era a simples questão das perguntas à toa, mas sim do falso interesse para/com os outros. Tamanha é a vontade de se perder em seus próprios pensamentos (assim como eu estava antes do elevador parar e outro passageiro embarcar nessa) que as pessoas simplesmente não ouvem as respostas dadas para perguntas automáticas.

Não ouvem, por não estarem interessadas. E não estão interessadas por terem outros problemas mais relevantes a serem pensados.


Ok. Parece estranho exigir de um estranho a paciência para um desabafo desconhecido - ou não necessariamente um desabafo, mas apenas uma resposta do parecer individual daquele a quem se dirigiu a pergunta. Mas não, o problema não é nem esse. Não é uma carência de uma pobre coitada que não tem mais com o que se preocupar. É algo muito maior.


A partir do momento em que nossos atos passam a ser impensados e puramente mecânicos, suas conseqüencias simplesmente deixam de ser humanizadas - acaba-se com o mais puro e sincero gesto.
Se ao invés de ouvir, as pessoas preferem vomitar pensamentos egoístas ou perguntas para que se mantenha o mínimo padrão de "educação" e "respeito ao próximo" (leia-se: a sutil demonstração de interesse por como se encontra aquele com que se depara, para não parecermos egocêntricos), e sem perceberem, admitem diálogos esquizofrênicos, algo está errado. E não é apenas no elevador.

Aceitar, acomodar-se com uma resposta sem sentido, ou pior, simplesmente não ouvir nem perceber que a resposta não teve sentido são atos que caminham para um individualismo febril extremamente prejudicial. Repito: não só em um elevador.

Como pode-se viver em um mundo em que pessoas preocupam-se apenas em tentar sobreviver respeitando a rotina massacrante para que em um dia de folga, questione-se o que fará num futuro próximo sem perceber que aí encontra-se o futuro? Sem notar ele passando despercebido em meio a emails, contas e palavras?

Como? Ainda não sei. Só sei que se algum dia, perguntarem "Tudo bem?" uma coisa é certa: responda algo que pelo menos faça sentido, para que seus pensamentos perdidos não se transformem em uma divagação - para que eles não notem essa injustiça, não percebam essa incomunicabilidade, essa loucura avassaladora, nem essa esquizofrenia coletiva.


Ou não.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Palavras Contadas


Sempre sentiu-se bem entre os livros. Passar horas em uma livraria, era, para ela, um programa tão bom quanto comprar sapatos pela metade do preço para consumistas ou assistir aos segundos finais da final de qualquer campeonato para torcedores do time vencedor.


Ao contrário da cidade-corrida lá fora, o reduto dos livros era calmo, tranqüilo. Os livros, aliás, não tinham pressa: a esperariam quanto tempo fosse necessário ali, na prateleira. Se fossem levados por rápidos sedentos leitores, ainda restaria a esperança de poder reencontrá-los em outra livraria. Não reclamavam de seu atraso. Eram pacientes, novos, nunca antes tocados.

Guardavam paixões, lágrimas, abraços, mortes, palavras. Sabia que dentro de cada livro, milhares de paisagens nunca antes vistas se esconderiam. Sabia não saber quais diálogos encontraria. Únicos, especialmente para ela - a serem desvendados no momento certo.

Tinha plena certeza de que as histórias guardadas entre a capa e a contra capa seriam estendidas no instante em que suas mãos as separassem. Eles se entregariam em uma reciprocidade incomum no individualismo do século XXI. Se abririam, contariam a ela coisas que jamais alguém seria capaz de sussurar. Entrariam em sua alma, atravessariam sua razão. A entenderiam - ainda que nem sempre ela os entendesse.

Em um misto de euforia e ansiedade, a moça folheava as páginas daqueles cujo título a chamava. Lia as orelhas. Via a foto do autor. Sorria como uma criança sabendo que ele poderia ser seu velho contador de histórias.

-Posso ajudar?

Sabia que perguntas assim davam abertura a desabafos momentâneos, mas não tinha do que reclamar - as contas a serem pagas; os trabalhos a serem entregues; as amigas esperando por ligações; o caso mal resolvido; o retrovisor quebrado; a dieta; a visita à tia doente; a inflação no supermercado; o aumento a ser pedido; as cobranças da mãe, da avó, do chefe, do zelador, do namorado, da vizinha; tudo se evaporara magicamente tornando-se uma fina névoa de meras preocupações batidas.

-Na verdade, não.

Com uma leveza de satisfação no rosto, sorriu. O vendedor, disposto a ajudar corações perdidos em meio a retângulos coloridos, se distanciava, quando ela completou:

-Quer dizer... eu precisava saber o preço dos livros. Onde é que eu acho?

-Nos leitores que existem entre as prateleiras. Aqui, olha - e apontou para uma maquininha quadrada com visor verde e linhas vermelhas luminosas saindo por sua base.

-Obrigada.

Aproximou-se do leitor com o exemplar que, aleatoriamente, carregava nas mãos. Curiosamente, o lugar que mostraria o preço assim era chamado: leitor. Achou engraçado, embora ironicamente cruel.

Números apareceram no visor. Nunca gostara de números. E neste exato momento, soube o porquê - eles não cabiam em seu bolso (ao contrário de palavras que escritas em um papel poderiam acompanhá-la para onde quer que fosse).


Desolada, voltara a realidade: era uma loja. Como pôde deixar-se enganar por todas aquelas folhas intocáveis que a esperavam com uma risada cínica...Largou o livro em um canto, e dirigiu-se à saída, pensativa.

Não podia culpá-los. Não eram eles que queriam se manter esquecidos em prateleiras, empoeirando. Não eram eles que queriam se afastar de suas mãos, fugir covardemente pelos becos da economia.

Provavelmente não queriam ser trocados por uma nota - uma nota que não fosse musical ou, muito menos, de poesia. Lá os livros eram, na verdade, produtos. Rotulados e marcados por tracinhos que seriam lidos pelo leitor quadrado e verde (maldito leitor...Não se deve ler apenas o código de barras, deve-se ler as palavras!) e então, trocados por números.

Bom, pensando bem, aquele velho contador de histórias deve sobreviver de alguma forma. Afinal, ele escreve para que leitores-humanos possam ter seu momento de tranqüilidade, angústia ou descoberta entre as páginas de seu livro e para isso, paguem seu pão ou sua cerveja. Entendeu o recado - pelo menos, fingiu que entendera.

Uma pergunta, no entanto, insistia em incomodá-la: como podiam apenas quatro números separados por uma vírgula afastarem tantas histórias de sua vontade?

A resposta era simples. Nem tudo estava perdido - apenas a vontade ciumenta de possui-los. De trocar a prateleira da livraria pela prateleira de sua casa. De deixá-los em meio a tantos outro já lidos e que agora insistem em acumular poeira. Os números nunca seriam capazes de afastá-los - tentariam inutilmente, mas os livros nunca se renderiam às traições. As palavras lhe eram fiéis. Existiam as bibliotecas.

Agora Dobra!


A brincadeira era assim: a pessoa escrevia uma frase numa folha de papel e dobrava de modo que ela não pudesse ser lida pelo próximo.

A única coisa que saberíamos a respeito das palavras ali contidas era a última a ser posta no papel - depois de dobrar, era necessário escrevê-la na nova folha em branco para que quem recebesse o papel pudesse começar sua própria frase com a palavra alheia.


Segunda frase escrita, era a vez de dobrar o papel, escrever a última palavra e então entregar para uma outra pessoa (ou para a mesma, caso não houvesse muitos participantes interessados nesse momento de criação conjunta desproposital).

No fim, o resultado eram histórias sem pé nem cabeça, mas engraçadas - ou não.

Às vezes dava tudo errado. Nada com nada pode, realmente, chegar em nada. E aí perdia a graça, as pessoas jogavam o papel de lado (ou faziam aviãozinho, picadinho, confete, bolinha...só não reciclavam porque não era época de aquecimento global e preocupação extrema ambiental) ou trocavam pelo jogo-da-velha.

Se tela de computador pudesse ser dobrada, daria para fazer isso.

Se a curiosidade não existisse, eu insistiria nessa brincadeira com a única condição que seria não ler o que o outro escreveu, restringindo-se a última palavra apenas.

Mas não dá.

Por isso tem horas que o bom e velho papel cumpre sua missão mil vezes melhor do que essa tela que daqui a um clique não existe mais.