terça-feira, 30 de setembro de 2008

Caminhão de Mudança


"Quer mudar? Ligue para nós!"

Assim dizia o anúncio. Lógico: mil planos, idéias e incertezas começaram a pulular em sua mente.

E se ela ligasse? E se ela realmente mudasse? E se ficasse pior? Não, pior do que já estava não ficaria. Ficaria sim. Ela era tão novinha, cheia de sonhos e criatividade...


E se ficasse melhor? Ah, iria ficar melhor!

Mas e se desse errado? E se parecesse muito artificial, robótico, plástico?! Ué, plástico muda - muda porque é plástico.

Ia ligar. Antes, claro, perguntaria o valor. Quanto vale uma mudança? Aceita-se moedas mutáveis? Deveria... Afinal, a bolsa sempre oscila.

Esperou dar o tempo dos seus pensamentos se reorganizarem e discou o número anotado.

Queria mudar. Há anos queria mudar.

Queria tanto mudar que nesses quereres acabou mudando várias vezes. Justamente, esse tanto de mudanças a deixava constantemente inconstante. E insatisfeita.

Agora ia mudar de vez. Um toque. Dois. Três. Iam atender. Iam atendê-la.


Desligou. Ficou com medo da voz que atenderia. E se perguntassem o que é que ela queria mudar?! Nunca saberia!

Melhor não mudar. Não com um caminhão de mudanças... Era muito pra ela!

Melhor esperar passar uma bicicleta, subir na garupa, deixar o vento mudar - mudar pelo menos seu penteado.

Ou ficar muda - o que não muda nada.

Liga ou não liga?

Liga. E ela lá foi menina de prometer e não cumprir?

- Boa tarde, serviço de mudanças, Gertrudes, quem fala?

- Ahm, é, oi... Eu queria saber, vocês fazem o quê para as mudanças?

- Vamos em domicílio, embalamos tudo, guardamos, encaixotamos, guardamos, colocamos no caminhão, entregamos, arrumamos no novo domicílio e depois os meninos cobram a gorjeta e dormem.

- Dormem na casa?

- Não, no caminhão.

- E quanto custa?

- Depende da distância e da quantidade de coisa.

- Ah, eu sou bem acessível e pequena. Não devem ser muitas coisas. Contam os pensamentos?

- Pensamentos é o quê? De cozinha, sala ou quarto?

- Cabeça.

- Ah... Esses eu não sei. Tem que ver com o superior. Eu posso estar te enviando para ele...

Estar te enviando? Não, ela não falou isso, falou? Quem a Gertrudes pensa que é?! Por acaso aquilo era um serviço de telemarketing? Ah, não. Desligou.

E mudou. Mudou, pelo menos, de planos: nada de caminhões por hoje.

domingo, 28 de setembro de 2008

Elogio ao Banho


Nada contra quem não toma.

Aliás, tudo contra, porque quem não toma banho não sabe aproveitar as coisas boas da vida. Não que não saiba. Pode até saber aproveitar algumas. Mas uma das melhores, não sabe.

Se bem que ela é uma das melhores no meu ranking de coisas boas da vida, e como tudo é relativo e eu não acordei hoje muito totalitária, respeitarei opiniões contrárias e as ouvirei com toda minha paciência.

Ouvirei, mas antes deixo claro dois pontos.

Primeiro, não vale dizer que tem gente que não toma por não ter onde tomar. Chuva existe para quê?!

[Chuva não só existe para alimentar plantas, mas também para alimentar clichês: lava as almas, se junta ao beijo e vira cena de cinema... ]

Segundo, dizer que não toma por preguiça/falta de tempo também não vale. Preguiça de se molhar ou de se secar?

Enfim, quanto aos banhos e não às pessoas, existem vários tipos.

Tá, também existem vários tipos de pessoas, e talvez se não houvesse tantos tipos de pessoas, não teriam tantos tipos de banhos, mas esse não é um texto sobre gente e sim sobre o que gente faz.

Voltando à água e ao sabonete. Banhos. Voltando, mas antes de começar de vez, um aviso: estou escrevendo sem o saber de experts em banhos.

Quer dizer, pensando bem, eu posso afirmar que já tomei muitos nessa minha vida; o que pode elevar meu nível de conhecimento em relação a eles...

Ok, considerem-me uma expert e tudo que eu vou dizer como verdades empíricas. Tudo não, mas a grande maioria, vai (se não banhos já não teriam a graça do novo).

Os tipos. Estes são tão variados como as frutas, as cores ou os sapatos. Existem várias formas diferentes de se tomar banho - o que é uma vantagem enorme para a humanidade que tem a mania de sempre cair na rotina e jogar tudo nesse buraco negro do dia-a-dia.

Em relação à temperatura, por exemplo. Existem banhos frios e banhos quentes. O engraçado é que banhos frios são para dias quentes e banhos quentes para dias frios.

Um paradoxo inigualável, que se completa nessa oposição e resulta numa bela composição temperamental.
O banho frio é capaz de tirar seu suor do corpo. O quente, deixa o suor dele no azulejo. Genial.

Quanto ao tempo. De gato ou demorado. Gato porque gatos se lambem e acham que assim estão de banho tomado. É rápido, prático, mas com certeza, deixa o ar de que faltou alguma coisa.

Este é o problema quando as coisas são muito rápidas: falta algo.

Essa falta, em compensação, acaba sendo totalmente oposta ao exagero do banho demorado. Exagero esse, capaz de demorar tanto que cria rugas.

Sim, banhos demorados deixam dedos enrugados. É a passagem do tempo exposta em apenas um banho. Alguns minutos a mais, você percebe a ação do tempo. Demorou, enrugou.

Continuando com o tempo - mas deixando de lado a questão do tempo do banho - tem o tempo do dia. Banhos podem vir de manhã, tarde, noite ou até madrugada.

Cada um com sua peculiaridade. Acordar, animar, relaxar, ou... Bom, banhos de madrugada devem ter inúmeros motivos, afinal, nem todos passam madrugadas no chuveiro - não é muito comum, já que a maioria das pessoas passa as madrugadas na cama.

Falando em maioria, existe a questão da roupa.

Sei lá, o normal é ela não participar desse evento diário, mas alguns não conseguem se desfazer dela a tempo.

O exemplo mais óbvio e simples é o da piscina: só cair e pronto. Pronto nada, deixar a blusa branca ficar transparente, colar no corpo ou encher de ar - como um balão – e o baita frio depois, completam o quadro. Aí, pronto.

Nessa entram os lugares. Nem todo banho é tomado debaixo do chuveiro. Pode ser dentro da banheira. E aí vêm companheiros. Calma... Podem ser sais aromáticos, espuma, hidromassagem, etc. Verdadeiros companheiros. Ou não.

Também tem o dentro do mar. Este, aliás, é um problema.

Ok. Super divertido, a parte mais legal da praia além do sol (porque areia serve só pra se construir castelos, grudar nos corpos, enterrar os pés, fazer pessoas à milanesa e abrigar carangueijos). O ruim do mar é que ele é muito, mas muito, ciumento.


Só quer você para ele e ele para você.

Depois de entrar, é certeza que vai puxar o seu ser com força ou vai levá-lo para onde sua maré for. Depois de sair, vai deixar sua pele grudenta, seu cabelo, então, nem se fala. Vai marcar presença até na sua boca - dá-lhe o gosto de sal!

Além disso, o mar é tão ciumento quanto possessivo. Como se não bastasse ser habitado por uma galera absurda (galera possessiva também, porque se tiver tubarão, vai querer devorar você), não deixa você não se viciar nele.

Oferece inúmeras atividades - pegar jacaré, surfar, boiar; está aberto para todos, sempre. Chama você de manhã, canta suas ondas à tarde, junta-se às estrelas durante as noites.

Tão possessivo que pega até o Sol e a Lua para ele: pega, e copia. Joga-os nas suas águas, entorta-os.

Apesar deste tipo de banho fazer o possível para agradar a todos, o banho em banheiro não agrada as crianças, por exemplo.

Elas não gostam. Hora do banho é pesadelo. Querem é brincar com os amigos. Certas elas, errados os pais – grandes hipócritas. A partir do momento em que se ensina que banho é uma atividade individual, exclusiva, e restrita somente a ela, perde a graça.

Onde já se viu se isolar de todos só para se melecar com o sabonete e escorregar no chão molhado? Largar a brincadeira para brincar sozinho – criar um mundo de vergonhas. Um mundo chato, uma hora chata. Chata, mas cheirosa.

Foi quando, para se evitar o tédio, inventaram o patinho de borracha. Alguém precisava acompanhar as crianças nesse momento de obrigação e tranformá-lo em algo lúdico.

Não que eu tenha visto muitos patos de borracha por aí. Aliás, tenho a teoria de que eles sejam apenas algo do imaginário coletivo. Algo presente em filmes, apenas. Como um clichê.

Assim como o tal do beijo na chuva: uma raridade. Infelizmente, é só começarem a sentir umas gotinhas caindo do céu, ou umas nuvens pretas o cobrindo, que a maioria das pessoas se encolhem, amontoam-se sob toldos e lajes. Saem correndo, mas não para os braços de alguém para que os beije.

O banho também não precisa ser só de água (a chuva, por exemplo, já virou de canivetes, de dinheiro, de bombas, de balas, de cartas em programas de auditório...).

Pode ser de bebida. Esse gruda tipo o do mar, mas denuncia as atividades etílicas. E deixa a roupa fedida para que todos saibam onde você esteve.

Pode ser de lojas. Amado, adorado, idolatrado –salve, salve-, pelas madames. E um saco para homens ou pessoas impacientes.

Não importa qual tipo, qual tempo, qual ingrediente, qual componente, qual humor, qual companhia.

Banho, é sim, bom. Para parar, pensar, se entregar. Chorar sem ser questionado. Cantar. Cantar para as paredes. Errar a letra. Gritar. Ou até para mandar alguém tomá-lo quando estiver irritando você.

Melhor do que mandar catar coquinho ou plantar bananeira é dizer: “Vai tomar banho!”.

Ou pedir: venha...

sábado, 27 de setembro de 2008

Gasolina de Bar


- Bom dia!

- Bom dia. - respostas automáticas como sempre. Sabia que renderiam aquelas velhas discussões de elevadores ou drive-thrus, mas nem para isso tinha saco.

Se o dia seria bom ou não, ela só saberia depois de deitada em sua cama após ele ter terminado. Estranho saber se uma coisa é boa somente após ela ter acabado...

- Álcool ou gasolina?

- Álcool.

- A senhora quer álcool?

Realmente, naquela hora da manhã, uma moça como ela pedindo por álcool poderia significar apenas três coisas. Um alcoolismo desenfreado, muitas mágoas para serem afogadas ou algo importantíssimo para se comemorar.

Virou o copo, fez uma careta inerente aos goles e saiu feliz. Revigorada.

Não sabia o motivo da bebedeira, mas agora sim. Estava disposta a começar o bom dia.

Consoantes Díspares


- Você é tão parecida a mim. Por isso que nós brigamos tanto.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Díspares Consoantes


Nunca pensara em se declarar, mas naquela tarde de outono, com folhas pelo chão e frio nas mãos, mudou de idéia.

Movida, talvez, pelo tédio (saiba que esse é o grande responsável por muitas mortes e nascimentos) e pela vontade inquietante de mudar os rumos de sua vida (outra coisa causadora de mortes e nascimentos), sem pausas ou grandes devaneios, disse:

- Faz tempo que eu não tenho um desses vícios arrebatadores, capazes de me corroer por dentro e me matar aos poucos - assim, pouco a pouco. Docemente.

- Cigarros?

- Não... Paixões.

E foi com o silêncio recebido como resposta, que, finalmente, ela percebeu. Os homens, de fato, não entendem indiretas.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Ideação


Se eu fosse uma idéia, seria uma daquelas bem loucas - chegaria até a ser revolucionária. Não seria rotulável, inclusive, de tão inovadora seria inclassificável (nem aquele que deu nome às cores e inventou o "fúcsia", "coral", "azul celeste", "bordô", "púrpura", ou outras, consegueria me dar um nome).

Mudaria o mundo, como a bomba atômica. A única diferença é que não traria medo, ódio, mortes ou feridos. Quer dizer, poderiam até chegar a morrer de amor, ou de felicidade e os ferimentos deveriam sim acontecer - só para se ter o gostinho da dor às vezes e o salgado das lágrimas - mas logo se transformariam em aprendizados e seriam curados.

Bombardearia com estrelas os céus escuros e sem luz. De vaga-lumes, as noites sem luar.

Se fosse uma idéia de extermínio, seria das cáries - porque doce é bom. Se bem que escovar os dentes também. Então seria uma idéia de exterminar a preguiça ou as pastas de dente no final.

Ah, seria uma idéia tipo a de amizade. Ou, a idéia de uma máquina de juntar gente que se gosta na hora que quisesse com muita cerveja gelada em dia quente e suco de melancia para quem dispensa coisas gasosas.

Poderia ser uma idéia de máquina que transformasse os grãos doces do açúcar em fios capazes de se desmanchar na boca. Capazes de trazer nuvens para as mãos das crianças... Se bem que essa daí já existe - é a máquina de algodão doce. Deixa eu pensar em outra.

De máquina de falta de vergonha, falta de medo do ridículo, que conseguisse inibir o julgamento dos outros; a timidez, o acanhamento, o recato. Uma cuspidora de verdade, de reparação de besteiras.

Ou não, uma de karaokê no chuveiro. É, essa seria útil para quem não consegue decorar letras e canta tudo errado no lugar com melhor acústica da casa.

Espera. Tem que ser uma idéia forte. É, forte. Ninguém a derrubaria. Devastadora. Avassaladora. Uma idéia efêmera mas eterna. Ácida mas básica. Doce e salgada. Preta e branca. Idéia de macumba e carnaval. Heavy metal e sapatilha. Teto e chão. Mão e pé.

Idéia que desse comida e roupa lavada para todos. Que acalentasse o pranto desesperado como um beijo inesperado. Idéia de mudar o mundo e mudar a própria idéia. Isso, seria uma idéia-camaleão. Mutável - este negócio de ser sempre o mesmo não está com nada.

Seria, aliás, uma idéia moderna, só que também rabugenta. Com gosto de chocolate, noite bem dormida, manhã com brisa solta. Uma idéia com pôr-do-sol, maresia e pernilongo na cidade.

Uma que fosse como banho quente após dia frio e cansativo. Ou ainda, uma que entrasse como água no corpo de todos e de todos assim fosse formada.

Uma idéia de carbono: grafite e diamante. Sem restrições - chegaria nela, neles, sem medo. Como o galã tirando a mocinha para dançar em comédias românticas.

Como início de namoro, apaixonante. Como tatuagem, para sempre. Como vela quando falta luz, confortadora. Como flor-de-lótus. Uma idéia de felicidade, transformadora neste mundo sujo.

Ah, quer saber? Seria melhor se eu fosse apenas uma idéia de ter a idéia de sair daqui e fazê-la acontecer.

domingo, 14 de setembro de 2008

Whisky e Saltos


Convidados para uma mesa com Vinícius e Tom, o domingo não pôde passar em branco. Com as ironias, boas sacadas e poesia dos dois personagens que embalaram o Brasil e o mundo com sua bossa nova (mas que para eles continuava sendo samba), fomos levados a uma viagem no tempo.

De volta às saias e aos vestidos rodados, aos cabelos curtinhos, aos maiôs grandalhões e com muita música, a peça "Tom&Vinícius" deixa um sorriso estampado no rosto até nos momentos mais tristes e uma vontade de cantar continuamente.

“Tudo Azul”, “Plaza”... Estes são apenas alguns dos bares a que somos chamados. Copos de whisky, diálogos inteligentes e, principalmente, seres humanos. Capaz de mostrar o lado pessoal da relação entre os dois (e da relação deles com o mundo), a peça tem em excesso a dose humana - uma overdose de gente em seu estado genuíno, destiladíssimo.

Pequenas discussões, grandes amores, ciúmes, paixões, bobagens, planos... Tudo isso, para mostrar o quão passional era a época em que o ritmo da vida era muito mais lento (ainda que Tom reclamasse da rapidez com que passavam alguns carros nas ruas, impedindo as crianças de brincar tranqüilamente - agora, por outro lado, os carros não correm: travam em congestionamentos...).

Whisky e boas músicas não podiam faltar. É em companhia do cachorro engarrafado e discutindo sobre mulheres ácidas ou básicas que Vinícius e Tom compõem músicas e se perguntam sobre o futuro (apenas como estarão as mesmas músicas daqui 50 anos - 100 seria muito tempo... para essa pergunta, eu respondo: excessivemente comemorando-se sua chegada à meia-idade).

Cansado de mesas de bar? Não se preocupe. Também fomos levados à fria Paris (onde Vinícius termina com Lila e começa com Lucinha), aos Estados Unidos (para que Tom cante com Sinatra) e ao belo pôr-do-sol de Ipanema. Tudo com um ritmo apaixonante - com trocadilhos à parte - tanto na peça, quanto nas músicas.

As músicas? Começam com aquelas tocadas em "Orfeu da Conceição" - ponto inicial da parceria. Passa por "Samba de Uma Nota Só" (apresentado nos States), "Tristeza", "Desafinado", "Garota de Ipanema", "Água de Beber", entre outras. É claro, não podia faltar a clássica da bossa: "Chega de Saudades" *.

Mais do que uma peça, "Tom&Vinícius" é o retrato de uma amizade inigualável. Um retrato de um amor por música, arte e poesia. Uma bela mostra de vitalidade nos acordes da música brasileira. Um musical que apenas atesta a frase de Tom Jobim: "Eu vou morrer um dia, a música vai ficar..." .

* Falando em "Chega de Saudades", assisti ao filme de Laís Bodanzky de mesmo nome. E deu vontade de tirar os saltos do armário para rodar por um salão de baile.

Além das músicas, os 95 minutos expõem vidas e conflitos inerentes às paixões humanas mostrados entre rodopios, copos e bilhetes em guardanapos.

Histórias entrelaçadas como os corpos no meio do salão, fazendo a trama girar entre casais, amigos, ou apenas freqüentadores do ritual que aviva memórias e sentimentos daqueles que parecem já ter vivido o suficiente - mas que se recusam a ficar parados esperando a morte chegar.

Triângulo amoroso (ou seriam "quadrado"?), jovens interferindo na rotina do casal (Marici vê seu par Eudes derreter-se na companhia da moça Bel, que por sua vez, apenas foi ao baile para acompanhar seu namorado Marquinhos - DJ do local - mas acaba aprendendo muito mais do que simples passos de bolero), amores reencontrados (Álvaro e Alice, ambos viúvos, enfrentam as limitações e superam barreiras da idade) e ciúmes entre amigas (Nice, trazida ao baile por Elza, acaba encontrando um par enquanto esta limita-se à solidão) recheiam a história.

Como se não bastassem, ainda rodopiam pelo salão discussões sobre o amor, problemas técnicos (como a falta de energia elétrica) e berros da Elza Soares não deixando o samba morrer.

Mais uma vez, ritmos embalam a obra e confirmam ainda mais a vontade de viver – a mesma já embalada por Vinícius e Tom.



Naquela Noite


Tinha esmalte vermelho nas unhas,
copo em uma mão,
mãos em outra.

Cheiro de cigarro no cabelo,
dor nos pés cansados de saltos.

Luzes coloridas nos olhos,
Músicas e promessas nos ouvidos.

Tudo isso, e um só pensamento:
não pensar. Viver.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Eternos Insatisfeitos


Calor:

Dá vontade de tirar a roupa e mergulhar no gelado.

Ser envolvida pela água, totalmente.

... E sair reclamando do frio.
__________________________________________

Frio:

Dá vontade de colocar mais roupa e mergulhar no calor.

Ser envolvida por cobertores ou por braços, totalmente.

... E ficar reclamando do calor.


terça-feira, 2 de setembro de 2008

Dupla Personalidade


-Deixa eu falar com a Irene.

Era uma manhã de segunda. Mal começara a semana, já estava recebendo ordens pelo telefone. E a voz não passava de uma criança.

-Desculpa, não tem nenhuma Irene.

-Como não? Tem sim, mano. Deixa eu falar com ela.

-Não, não tem.

-Tem! Ela me deu esse número.

-Então você discou errado.

-Claro que não! Fiz certinho, ó aqui.

-Você ligou pra qual número?

Sim, confirmava. Era seu telefone. Mas não podia ser, não havia nenhuma Irene.

-Olha, sinto muito mas desde que eu saiba, não moram Irenes aqui.

-Mora que eu sei.

-Sabe errado, porque não moram.

-Mora!

-Não mora.

-Mora sim!

-Não mora. Saco!

Desligou irritada: se ela disse que não, era não, oras... Horas, aliás, se passaram para que o barulho ensurdecedor do telefone voltasse a incomodá-la.

-Alô?

-Mano, eu quero falar com a Irene.

-Você de novo? Quantas vezes vou ter que dizer que não existe nenhuma Irene neste número?

-Existe sim, você que não quer que eu fale com ela.

-Não existe não, se existisse aposto que não teria porquê não passar o telefone a ela. A menos que ela esteja fugindo de você. Ela está fugindo de você?

-Não, né! Ela que me pediu pra ligar.

-Pediu, mas insisto: deu o número errado. Ou você se enganou ao anotar.

A voz aguda do menino se transformou em grave. Séria. Pesada.

-Dá pra parar de enrolar o menino e deixar logo ele falar com a Irene? Eu não tô de brincadeira não. Ele tem que falar antes de ir para a escola. É bom você passar logo essa porcaria de telefone.

-MAS NÃO TEM IRENE! Você acha que eu estaria enganando o moleque? Se eu disse que não tem, é porque não tem. E ponto.

-Moleque, não! Oh o respeito! QUAL SEU NOMI?

Juliana? Márcia? Lívia? Sandra? Qual seria seu nome? Mentiria, diria a verdade? O que responder?

-Não tenho nome...

-Como não? Tá com MEDO? Fala seu nomi então, já que você não quer que ele fale com a Irene!

-Ir..não, Sandr...NÃO INTERESSA MEU NOME!

-Você tá se escondendo, né, mano, vai falar ou não vai?

-Sinceramente? Não vou falar coisíssima nenhuma, mesmo porquê já perdi demais do meu tempo aqui. Você vai ver, depois o menino chega na escola e fala com a Irene sobre a confusão. E nunca mais voltará a ligar, pois verá que não é esse o número dela.

Começou a se confundir. Será que ela era a Irene? Será que o nome pelo qual todos a conhecia, Sandra, não passava de alguma leitura mal-feita e errônea de seus verdadeiros documentos? Pseudo-nome?

Novamente, aliviou-se ao ver que haviam desligado. Alívio curto - minutos depois, ouvia o toque vindo do aparelho.

-MOLEQUE, AQUI NÃO TEM IRENE!

-Moleque não, eu sou homi, já! E DEIXA EU FALAR COM ELA!

-Será possível uma coisas dessas?! Desculpa, então, HOMI, NÃO TEM IRENE AQUI!

Ele insistia. Ela se irritava. Não podia brigar como uma criança, mas agora, a criança dizia ser um homem...

-Pela milésima vez, você se enganou. Quando você for para o colégio, fala com a Irene e vê como houve uma confusão. Ou você anotou o telefone errado, ou ela se enganou e passou outro número. TALVEZ ELA NEM SAIBA QUAL O NÚMERO DELA DIREITO!

-Tá chamando a Irene de burra, mano? Você é da onde? É daqui do bairro?

-Não interessa. Não sei se sou daí. Eu não sou de lugar nenhum. A questão é: PÁRA DE LIGAR PORQUE AQUI VOCÊ NÃO VAI ACHAR A PESSOA CERTA!

Sem perder tempo, desligou. Na cara de uma criança! Mas ela dizia ser grande já...Sabia que ele voltaria a ligar. Foi tomar uma água. Ligou.

-Ó eu vou jogar uns papos sérios agora. Ouve bem. Você vai me passar para a Irene, senão..

-..Senão nada! NÃO TEM IRENE. E você não entendeu? Chega de ligar para cá.

Esse que era o problema, ela dava corda para as conversas. Adorava conversar. Maldito gosto! Tinha que gostar de ouvir os outros? Tinha sempre que palpitar? Tinha que ser intrometida, ouvir assuntos alheios, e ainda, não satisfeita com isso, comentar mesmo não sendo chamada?! Tinha que dar corda para um menino pelo telefone, insistente no engano? Não podia simplesmente ficar quieta? Não, não e não. Era um de seus males.

-Mas é que moça, eu sei que esse é o telefone dela...

-Moleq..quer dizer, HOMI. Seja forte e aceite: ela se enganou. Você se enganou. Todos nos enganamos. Acontece.

O dia passou e entre telefonemas, msn, blogs e emails, estava prestes a sair de casa. Já havia passado mais de uma hora sem a ligação do moleque-homi-mano-Irene.

Estranhava. Talvez ele simplesmente não tinha o que fazer durante a tarde...Mas essa Irene, também, tinha que mandar o número errado para o menino? Que inferno de mulher!

Ou será que... ela, Sandra, não era Irene? Ela também era um inferno de mulher. Ela ouvia conversas alheias, dava corda para alguns mesmo sabendo que não teria futuro, fazia com que acreditassem na sua simpatia mesmo sendo naturalmente antipática. Irritava, respondia, se intrometia.

Talvez fosse ela, Irene. Agora o menino precisava ligar. Tinha que tirar a limpo essa história. Como era a Irene que ele procurava? Alta, loira, olhos azuis e peitão? Não, então não era ela. Uma menininha com vestido sujo, meleca no nariz e pé preto de terra? Também não.

Ah! O telefone. Atendeu, pela primeira vez do dia, rapidamente.

-OI! Você quer falar com a Irene, né?!

-Eu quero, mano. Passa logo que eu já estou cansado. Chega de me tirar, mano, eu sei que ela tá aí.

-E ela é como?

-Quê? Sei lá como ela é, você é que tá com ela aí. DEIXA EU FALAR COM ELA, CARALHO.

Não era essa a resposta que ela esperava ouvir do menino. Como podia ser homi se a voz aguda e falha o denunciava? Era sim um menino. E meninos não deveriam falar assim, de jeito tão grosso.

A inocência, pureza e leveza pueril já não existia mais, pelo jeito. O momento de esperança dela se descobrir como Irene se foi. Evaporou-se como fumaça de café quente.

-Tá, foi engano. De novo.

Desligou.

Saiu de casa pensativa, angustiada. Preocupada com meninos-homens, com crianças que diziam ter crescido. Com duplas personalidades. O dia inteiro procurando uma Irene. Irene, dona de seu número de telefone.

Alguma coisa estava errada. Completamente errada. O mundo, agora sim, estava do avesso do avesso do avesso do avesso...

Ela? Após tantas chamadas, também voltou-se ao avesso. Entrou numa crise existencial. Exagerada, foi além. Não só sua existência estava agora fadada ao caos de crianças insistentes e desgovernadas, de telefonemas capazes de dar nós em cabeças desembaraçadas, mas também em alterar pessoas. Mergulhou também numa profunda crise de identidade.

Para amigos, continuava com o nome de sempre. Para desconhecidos, Irene. Isso quando aqueles com quem falava não faziam parte dos inclassificáveis: nem amigos, mas também nem desconhecidos. Aí o nome se juntava. Virava composto. Como mocinha de dramalhão mexicano. Era Sandra Irene. Ou Irene Sandra...