terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Leite Gelado

Ele era um menino feito de gelo. Sua aparência era normal, nada de ser pálido como os vampiros que andam tanto na moda. Nada de ser molhado como as sereias que estavam antigamente na moda (na moda dos marinheiros). Tinha o rosto como o de um moleque qualquer. Aliás, nem vou descrevê-lo porque você achará que o conhece de algum lugar, afinal, ele é igual ao seu irmão, seu vizinho ou até mesmo seu amigo. Ele pode ser igual a você. É! Cabelos e olhos castanhos. Você não é assim? Bom, ele é tão normal que acaba sendo igual ao menino por quem aquela menina se apaixonou. Igual também ao rapaz da banca de jornal, que sabe de mais notícias do que qualquer jornalista. Igual ao seu namorado.

Ele gosta de assistir futebol, adora ano de copa, não pára de falar besteira. Gosta de contar piada e contar quantos dias faltam para o carnaval. Pra falar a verdade, ele gosta de contar qualquer coisa: quantas pernas de moça têm no ônibus, quantas janelas têm no prédio, quantos semáforos têm na rua e histórias para boi dormir. Só não gosta das contas que estão a pagar. E de imposto. Mas isso também ninguém gosta.

Dançar ele dança, assim, de vez em quando. E quando dança, dança tão bem que desliza pelo salão. Desliza e sua. Sua gelado e não quente. Suas mãos são frias. Já perguntaram se ele não tinha algum problema de circulação - ele dizia que não, quem mal circulava era seu jornalzinho da Associação de Moradores do Bairro. Ia de casa em casa, só, visto apenas por uma ou outra senhora entediada.

Em seu país todas as pessoas eram normais, ou seja, loucas. Porque todos aqueles normais são assim por terem um quê de loucura. Mas não vamos falar disso, afinal, tem coisa bem mais importante do que discutir a insanidade: ele era de gelo!

Quando criança, ia à escolinha. Adorava. Odiava quando fazia muito sol e tinha aula de educação física. Ele derretia. Depois, cresceu um pouco e passou a ir a barzinhos. Adorava. Odiava quando via uma menina muito gata. Ele derretia.

Você acha que é fácil ser de gelo?

Algumas pessoas diziam que ele era sem coração. Nada disso. Ele tinha sim coração. Só que era gelado, oras - o que o fazia uma pessoa difícil de lidar. Outras reclamavam de sua transparência. Não tinha culpa. Tentava, mas não conseguia esconder o que achava. Ainda tinham aqueles que diziam que ele era difícil de segurar: não parava um minuto (na verdade, nessa categoria se enquadram mais "aquelas", no feminino, porque ele não parava com uma só).

Um dia viu uma menina no supermercado. No começo parecia bem insossa, precisava ser misturada a algo mais doce ou mais forte. Toddy ou café, por exemplo. Ela era bem branca e tinha um gosto conhecido. Parecia o gosto que vem das mães, quando nascemos e nos alimentamos delas. Você já deve ter lido Freud, né?

Ela estava lá, perto da manteiga, dos queijos e da margarina. Parecia fresca, mas pelo menos estava geladinha. Ele se aproximou e percebeu:

Ela era de leite.

O que fazer?

Ele era de gelo.

E foi assim. Fácil.

Um deleite.

Um deleite que o fez degelar.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Danada

A procurei em todo lugar.
Na rua,
em casa.

Com os outros,
comigo.

Na cama, no semáforo, no chão.
Nos olhos, nas bocas, nas mãos.

Nas brigas, nos abraços.
Nas surras, nos beijos.

A procurei em qualquer cantinho besta, perdida em qualquer lugar que fosse.
Na praia, no asfalto, no mato, em bares.

Com os pássaros, com os vermes -

Nada.
Não a encontrei.
Danada inspiração.

Ah. Não devo ter procurado direito. Se tivesse, com certeza, teria encontrado. Ou talvez foi em sua procura que a perdi. Não, não perdi. Ela que se perdeu de mim. Se perdeu?

[Talvez não. Afinal, inspiração não é dessas coisas que vem do nada - ela não vem. Ela já está em nós]