segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Palavras Contadas


Sempre sentiu-se bem entre os livros. Passar horas em uma livraria, era, para ela, um programa tão bom quanto comprar sapatos pela metade do preço para consumistas ou assistir aos segundos finais da final de qualquer campeonato para torcedores do time vencedor.


Ao contrário da cidade-corrida lá fora, o reduto dos livros era calmo, tranqüilo. Os livros, aliás, não tinham pressa: a esperariam quanto tempo fosse necessário ali, na prateleira. Se fossem levados por rápidos sedentos leitores, ainda restaria a esperança de poder reencontrá-los em outra livraria. Não reclamavam de seu atraso. Eram pacientes, novos, nunca antes tocados.

Guardavam paixões, lágrimas, abraços, mortes, palavras. Sabia que dentro de cada livro, milhares de paisagens nunca antes vistas se esconderiam. Sabia não saber quais diálogos encontraria. Únicos, especialmente para ela - a serem desvendados no momento certo.

Tinha plena certeza de que as histórias guardadas entre a capa e a contra capa seriam estendidas no instante em que suas mãos as separassem. Eles se entregariam em uma reciprocidade incomum no individualismo do século XXI. Se abririam, contariam a ela coisas que jamais alguém seria capaz de sussurar. Entrariam em sua alma, atravessariam sua razão. A entenderiam - ainda que nem sempre ela os entendesse.

Em um misto de euforia e ansiedade, a moça folheava as páginas daqueles cujo título a chamava. Lia as orelhas. Via a foto do autor. Sorria como uma criança sabendo que ele poderia ser seu velho contador de histórias.

-Posso ajudar?

Sabia que perguntas assim davam abertura a desabafos momentâneos, mas não tinha do que reclamar - as contas a serem pagas; os trabalhos a serem entregues; as amigas esperando por ligações; o caso mal resolvido; o retrovisor quebrado; a dieta; a visita à tia doente; a inflação no supermercado; o aumento a ser pedido; as cobranças da mãe, da avó, do chefe, do zelador, do namorado, da vizinha; tudo se evaporara magicamente tornando-se uma fina névoa de meras preocupações batidas.

-Na verdade, não.

Com uma leveza de satisfação no rosto, sorriu. O vendedor, disposto a ajudar corações perdidos em meio a retângulos coloridos, se distanciava, quando ela completou:

-Quer dizer... eu precisava saber o preço dos livros. Onde é que eu acho?

-Nos leitores que existem entre as prateleiras. Aqui, olha - e apontou para uma maquininha quadrada com visor verde e linhas vermelhas luminosas saindo por sua base.

-Obrigada.

Aproximou-se do leitor com o exemplar que, aleatoriamente, carregava nas mãos. Curiosamente, o lugar que mostraria o preço assim era chamado: leitor. Achou engraçado, embora ironicamente cruel.

Números apareceram no visor. Nunca gostara de números. E neste exato momento, soube o porquê - eles não cabiam em seu bolso (ao contrário de palavras que escritas em um papel poderiam acompanhá-la para onde quer que fosse).


Desolada, voltara a realidade: era uma loja. Como pôde deixar-se enganar por todas aquelas folhas intocáveis que a esperavam com uma risada cínica...Largou o livro em um canto, e dirigiu-se à saída, pensativa.

Não podia culpá-los. Não eram eles que queriam se manter esquecidos em prateleiras, empoeirando. Não eram eles que queriam se afastar de suas mãos, fugir covardemente pelos becos da economia.

Provavelmente não queriam ser trocados por uma nota - uma nota que não fosse musical ou, muito menos, de poesia. Lá os livros eram, na verdade, produtos. Rotulados e marcados por tracinhos que seriam lidos pelo leitor quadrado e verde (maldito leitor...Não se deve ler apenas o código de barras, deve-se ler as palavras!) e então, trocados por números.

Bom, pensando bem, aquele velho contador de histórias deve sobreviver de alguma forma. Afinal, ele escreve para que leitores-humanos possam ter seu momento de tranqüilidade, angústia ou descoberta entre as páginas de seu livro e para isso, paguem seu pão ou sua cerveja. Entendeu o recado - pelo menos, fingiu que entendera.

Uma pergunta, no entanto, insistia em incomodá-la: como podiam apenas quatro números separados por uma vírgula afastarem tantas histórias de sua vontade?

A resposta era simples. Nem tudo estava perdido - apenas a vontade ciumenta de possui-los. De trocar a prateleira da livraria pela prateleira de sua casa. De deixá-los em meio a tantos outro já lidos e que agora insistem em acumular poeira. Os números nunca seriam capazes de afastá-los - tentariam inutilmente, mas os livros nunca se renderiam às traições. As palavras lhe eram fiéis. Existiam as bibliotecas.

5 comentários:

Anônimo disse...

eu sei que vc se inspirou na nossa ida à Fnac pra escrever isso! vc não me engana, mocinha...
apesar disso, muito bom... pra variar!

Alice Agnelli disse...

na verdade, foi em outra...na livraria da vila.

mas vai um brownie?

Anônimo disse...

VC É MÁ!

Anônimo disse...

Olá! Estou eu aqui de volta, por vontade própria...auhahua
E nesse tempo fora você até mudou o fundo do blog hein?! Aprovei, aliás!
Em relação ao texto, adorei mesmo. Exatamente o que eu penso, e nunca tinha pensado na ironia do nome "leitor"!
E o fim dá abertura pra continuação hein? uhauhua

Tulio Bucchioni disse...

É realmente não tinha pensado no leitor, nem nesse paradoxo números e palavras...Sim, já tinha pensado na injustiça dos preços...Dos produtos..Dos rótulos...Do livro-mercadoria!

Mas acho que acima de tudo, já tinha pensado em como gosto de tudo que você escreve e principalmente de como você escreve!E, claro, de como isso me faz feliz!