sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Sentidos Perdidos IV


Tocou a campanhia. Dona Clotilde, com seu avental de flores e seu vestido de bolinhas laranjas, foi correndo atender. Adorava visitas.

- É aqui o 134, né? Vim arrumar algum cano...

- Ah, pode entrar... - sua insatisfação era nítida, ao ver que não era nenhum encanador bonitão para alegrar seu dia. - Olha, pode ficar aí mesmo, é onde tem um cano com problema.

- Mas esse seu banheiro está muito fedido... Eu, hein, ainda vou ter que aguentar esse cheiro?
Clotilde não entendeu nada. Para ela, era o cheiro que sempre sentira. Normal. Cheiro de nada. Largou o moço e voltou para cozinha onde preparava o bolo de aniversário de seu marido.

Adorava cozinhar, principalmente doces. Sempre empanturrara seu Gerson de tortas de morango, de limão, pudins de leite, bombas de chocolate e bolos, bolos, bolos. Depois reclamava do tamanho da barriga do marido, ou da descoberta das diabetes.

- Ô mãaaaae...

Mal colocara o bolo no forno e teve que ir correndo ver o filho que acabara de acordar, com cheio de ressaca. Não percebeu. Só notou o rosto cansado do garoto.

- Que foi? Que horas você chegou ontem?

- Não sei. Só sei que eu precisava ir ao banheiro para tomar banho e tem aquele cara lá. Já não agüento meu cheiro, estou muito fedido, mano.

- Claro que não, filhinho, só está cansado. O moço vai arrumar o banheiro e depois você vai. Você está cheirosinho como sempre.

A mãe, realmente, enlouquecera. Ou estava com o nariz realmente entupido. Nem ele se aguentava com aquele odor desagradabilíssimo que saía de seu corpo após um dia e uma noite suando e nada de banho.

- Mas filho, que bagunça está esse seu quarto! Deixa eu arrumar um pouco...

O "pouco" dela, tornou-se horas de arrumação, e descobertas em meio às roupas amontoadas e revistas espalhadas.

- Mãe... Acho que tem alguma coisa queimando... Você está sentindo?

- Ah, deve ser o vizinho, você sabe como ele é!

Do banheiro, ouviu-se um berro. Era o encanador avisando que sentira cheiro de queimado vindo da cozinha.

- Esse encanador é muito intrometido. Onde já se viu, falar que alguma coisa estaria queimando se não há nem cheiro!?

- Na verdade, mãe, eu estou falando sério, está cheirando sim a queimado. Você não colocou nada no forno?

- Claro que sim, o bolo de aniversário do seu pai, mas acha que eu, nesses anos de cozinha que tenho, deixaria alguma coisa passar do ponto?

- Sei lá, mãe, o cheiro está realmente muito forte...

- Você está imaginando coisas, é o cansaço. - disse enquanto estendia os lençóis.

Um grito desesperado interrompeu a arrumação, era, de novo, o encanador:

- FOGO NA COZINHA!

Saíram correndo. A cozinha estava uma fumaça só. Mal se via o fogão, a geladeira. O cheiro era impossível, sufocante. Não conseguiam respirar. Dona Clotilde, porém, respirava. Não entendia da onde viera aquela fumaça.

- Ué, mas o bolo nem queimou! Como pode ter saído essa fumaceira? - disse após seu filho, com o instintor de incêndio, amenizar o fogão que era, literalmente, um fogão.

- Nem queimou? Isso é só carvão, dona!

- Nossa! É mesmo! Mas nem está cheirando a queimado...

Realmente, o encanador percebera que havia se metido na casa de uma senhora, no mínimo, sem nariz. E quase morrera em um incêndio.

- Mãe, você está doida? Olha isso aqui! Quase que a gente morre!

Doida ela não estava. Só não sentia cheiro nenhum. Seu olfato, de fato, estava com sérios problemas. E agora? Será que nunca mais uma flor seria carregada de perfume?

Se bem que para ela, flores não interessavam. A verdadeira preocupação era com as comidas - não sentiria mais aquele cheirinho de almoço pronto no ar. Não sentiria o gosto de seu almoço. Não saberia se a quantidade de sal está boa. Erraria o ponto de todos os bolos. Erraria a dose de açúcar.

E perderia o posto de "cozinheira-de-mão-cheia". Todos a criticariam. Deixaria de ser a melhor mãe/esposa/vizinha.

O jeito seria parar de cozinhar - pelo menos assim as pessoas não a veriam errar. Mas, em compensação, nunca mais sorriria ao ver alguém elogiar sua comida, em frente ao prato vazio.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Sentidos Perdidos III


Seu Caetano não entendia como aquelas pessoas podiam se irritar tanto com tão pouco. Se aquela mulher tivesse passado a noite em uma guarita, ela teria motivo para estar, no mínimo, irritada de sono - como ele estava.

O interfone não parara de tocar, cada hora alguém com um problema diferente, como se ele pudesse solucionar todos.

Já não aguentava mais aquele toque, outra vez irritando-o.

- Portaria, bom dia. - pelo menos rima ele fazia.

- Seu Caetano, hoje vai vir um encanador para arrumar meu banheiro, então eu gostaria que você liberasse a entrada. Depois também, se vier uma encomenda no meu nome - uma caixa grande, vermelho tijolo esmaecido - pode aceitar que não é nenhuma bomba, haha, e outra coisa, que horas o meu filho chegou ontem? Sabe como é, eu peguei no sono e agora que eu fui ver ele está lá, acabado, no quarto. Alguma idéia? Foi muito tarde?

-

- Desculpa, você pode repetir?

- !

- Olha, vou ligar de novo porque eu não estou ouvindo nada. Acho que deu defeito na ligação. Você está me ouvindo?

-

- É, não deve estar.

- !!

- Faz assim, espera 2 segundos.

Dona Clotilde, do 134, dona da caixa vermelha tijolo esmaecido, voltou a ligar umas 3 vezes, e nenhuma das vezes ouvia a resposta de seu Caetano. Deixa para lá. Ele deve ter entendido.

Não deu nem tempo de descanso para os ouvidos, interfone insistiu em tocar:

- Oi, você poderia interfonar para o 52 para mim?

-

- Alô, seu Caetano, o 52... Dá para você me responder? Alô? ALÔ?

-

- SEU CAETANO? SÓ ME PASSA PARA O 52!

Seu Caetano passou, enquanto o moço, irritado, achara que ele estivesse fazendo alguma gracinha.

Gracinha que nada! Era sua voz que não saía. Estava mudo.

Mudo, mas feliz: pelo menos agora podia se concentrar apenas no abrir e fechar dos portões, pois já não havia motivo para deixar o interfone no gancho - não conseguia fazer com que os outros o escutassem, mesmo!

Sem contar que agora ninguém mais reclamaria do seu sotaque puxado ou de seu tom de voz. Era tudo o mesmo - nada.

domingo, 26 de outubro de 2008

Sentidos Perdidos II


Chegou na garagem e achou estranho o carro pegar sem que ela antes ouvisse o barulho do motor.

-Seu Caetano! Abre o portão para mim!

O porteiro não abria, assim como ela não ouvira sua voz o chamar. Falou mais alto:

- SEU CAETANO, O PORTÃO!

-Calma, dona! Já vai!

Ela o viu murmurando alguma coisa e em seguida, o portão se abriu. Engraçado não ter ouvido seus berros e nem mesmo o que ele dissera - da próxima vez deixaria o vidro aberto.

Ligou o rádio, e antes mesmo de perceber qual música estava tocando, começou a cantar. Pelo menos isso pensava que estava fazendo. Não ouvia nada. Nem música, nem voz. Sabia estar ligada na estação. Sabia estar gesticulando. Sua voz não saía. Os sons não saiam.

Ou ela não ouvia.

Entrou em desespero. Começou a berrar, a buzinar... Parou o trânsito da esquina de sua casa. Pessoas se aproximaram, todas mexendo os lábios, mas não soltando vozes.

Silêncio absoluto.

Devia ter sido algum feitiço do Seu Caetano. Ela tinha certeza que ele devia estar com ciúmes de seus brincos cor de âmbar ao entardecer.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Sentidos Perdidos


O cheiro de café-da-manhã logo ao acordar o ajudou a prever, deliciosamente, como seria o dia. Espreguiçou-se, enrolou um pouco na cama e teve a certeza de que não estava atrasado. O despertador ainda não tocara. Animou-se. Abriu os olhos. Não viu nada.

Tateando as paredes, foi para a cozinha. Seguiu o cheiro. Sentou-se. Esperou um pouco, e ouviu o pão, que o esperava, pular na torradeira. Foi buscá-lo. Passou a manteiga, sentiu-a derreter, escorregar em suas mãos.

Percebeu que o barulho de água vindo do banheiro, cessara. Era o chuveiro que já não despejava água. Depois de uns minutos, pôde ouvir a tranca da porta se abrindo. O vapor quente combinado ao cheiro de banho deram a certeza de que ela estaria a caminho.

- Viu que eu deixei o pão na torradeira para você?

- Não. Estou cego, eu acho.

- Mas você está comendo... Cego? Você está doido. Enfim, esta roupa está boa?

- Qual roupa? Não consigo ver nada!

- A que eu estou vestindo, oras... Que indecência! A essa hora da manhã você vem me dizer que não está vendo minha roupa?

- Ela é de que cor?

- Como ela é de que cor? Você não percebe que é um vermelho alaranjado com tons de coral responsáveis exatamente por essa mistura única e pela originalidade na composição, que junto aos meus brincos cor âmbar ao entardecer, dá um toque especial à produção?

- Na verdade, não. Eu só vejo preto.

- Ai, vocês, homens, são mesmo uns insensíveis!

Pegou a bolsa e saiu irritadíssima, mas sem antes dizer:

- E vê se coloca café na xícara! Você está jogando tudo pra fora, molhando a mesa inteira. O açúcar, também. Eu é que não vou limpar essa bagunça. Credo. Parece um cego.

Bateu a porta.

Deixou-o com as mãos sujas de manteiga, o colo cheio de café quente que escorria da mesa, a mesma não-visão e a dúvida: como seria o âmbar ao entardecer?

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Encontro

Anos desde aquela noite fria de crise. E ponha crise naquilo. Copos na parede, cacos de vidro no chão.

Fora a bebida, alguns disseram. Culparam as garrafas vazias pela separação. Os dois não tinham juízo. Impacientes, impulsivos. A vida corria como os carros na rua movimentada onde moravam. Chegou o tempo em que nem mesmo haviam tempo um para o outro.

Buscavam a independência. Mudaram-se para aquele apartamento bagunçado, cheia de papéis e embalagens vazias. Os dois. Sozinhos. Se bastariam. Ou não.

Precisavam de um espaço. Cada um o seu. Privacidade. Na geladeira, uma prateleira era de um; outra, era de outro. A cama, dividida pelos travesseiros.

Sentiam-se sufocados. Se um arrumava o banheiro, o outro logo reclamava não poder encontrar o creme de barbear. O creme hidratante, o rímel. Separaram-se.

Foi quando, em uma mesma noite fria, e em um mesmo bar - que nenhum dos dois antes freqüentavam -, os olhares se encontraram. Anos haviam se passado.

Se viram. Se olharam. Se enxergaram.

Finalmente, se encontraram. Ele já não tinha o jeito de garoto. Ela, era uma mulher. Conversaram, conversaram, conversaram.

A noite passara tão depressa, que nem perceberam serem os últimos a sair do bar.

Atreveram-se a voltar ao antigo apartamento. Não podiam deixar a aventura escapar como haviam deixado anos atrás. Agora, não. Sabiam como se comportar. Eram adultos.

O apartamento estava vazio. Empoeirado. Restava uma ou outra lembrança. Um caco em um canto.

Não precisavam de palavras. Aquelas mesmas, que deixaram escapar, quando precipitados viam seu futuro em conjunto, já não eram necessárias.

Sabiam o que o outro pensava. Sabiam saber isso antes mesmo de perceberem o quanto eram parecidos e diferentes.

Sabiam que tudo que economizaram ao evitar trocar bobagens para amenizar a rotina, agora poderia ser desperdiçado.

Agora sim. Sabiam o sempre que jogaram fora naqueles anos de separação. Encontraram-se, naquela noite eterna. Finalmente, novamente.

domingo, 12 de outubro de 2008

Separação


Garrafas no chão, copos quebrados, flores despetaladas. Havia tempo que um grito não cortava daquela maneira as noites frias pelas quais passavam.

Havia tempo, aliás, desde que brigaram pela última vez. Antes, discussões eram freqüentes. Diárias. Cansaram.

Desgastados pelos mesmos argumentos, moravam juntos; viviam sozinhos. Já não valia a pena discutir.

O apartamento era pequeno, bagunçado. Papéis, revistas, jornais velhos - passados. Guardanapos, embalagens vazias. Cinzas, cinzeiro.

Cheirava a centro. A rua, pelo menos, era movimentada - ao contrário da rotina em que caíram.

Os sentimentos antes claros e coloridos, escureciam-se, enfureciam-se, misturavam-se em meio à fumaça dos bares pelos quais passavam noites.

Bares diferentes, diga-se de passagem. A vida em comum, tornara-se incomum.

Já não se falavam. Não se viam. Há muito tempo se olhavam mas não enxergavam um ao outro. Enxergavam um no outro. Um deturpado no outro. Outro deturpando o um.

Esgotou-se. Esgotaram-se. Por um instante, não mais que um instante, decidiram: em meio a berros, cada um foi para seu lado. Para sempre.

Um sempre tão eterno quanto juravam ser o amor que antes sentiram um pelo outro.

Festa de Aniversário


Correria, gritaria, bexigas e presentes. Enfeites de mesa, monitores com macacões amarelos.

Ilarilariê. Quer dizer, isso era na minha época. Agora é Hanna Montana, High School Musical... até Fergie, você escuta em festinhas infantis.

Coxinha, empadinha, risoli frio. Coca-cola, fanta laranja, sprite. Prato, copo, garfo e faca de plástico. Altíssima qualidade.

Conversas aqui, acolá. Parentada.

- Você é a jovem, e eu sou a mais velha. Só nós duas não temos com quem conversar!

Conversamos.

Entra-e-sai de crianças, uma tropeça, a outra chora, todas riem.

Mais uma família convidada chegando:

- Como ela cresceu!

Cumprimentos mil. E o frio?

- Ai, acho melhor a gente fechar essa porta, viu. Essa friagem vai deixar todos resfriados...

- Sabe que semana passada todo mundo ficou mal, lá em casa.

- É, menina...

- Filho! Você está todo suado! Coloca esse casaco.

- Mas eu estou com calor, estou até suado! Você mesma disse...

- Mas se você sair agora, vai levar um choque térmico!

- Eu estava lá fora até agora!

- Vai colocar ou não vai?

- Não. Acho que já é hora do parabéns, olha.

Movimento no salão de festa do prédio garantiu o que supôs o menino. Era a hora dos parabéns. Todos em volta da mesa, em suas devidas posições.

Ela já estava em frente ao bolo, mirando a vela de número 9.

- Começamos?

- Falta o papai...

- ... eu estou procurando a câmera! - respondeu uma voz distante.

Gritaria. Todos ansiosos pelo bolo. A troca momentânea de papel: agora as atenções não se voltavam à filha. Eram todas para o pai. Mudança de protagonista.

- Deixa a câmera, olha só, a Joana está com uma, depois ela passa as fotos pra gente!

Teimoso, ou gostando de ouvir seu nome sendo chamado pelo salão, ele insistia em querer achar a câmera.

- Vai, pai, a vela vai apagar! - e com ela, apagariam as esperanças de poder fazer um pedido.

Pronto. Chegou. Acomodou-se ao lado da filha, deu um beijinho e o aval: "Parabéns para você..."

Por um momento, todos estavam envoltos na mesma melodia.

"... Nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida"

A menina, extasiada. Não sabia se batia palma. Sorria. Todos estavam ali para ela. Uma vez por ano estariam todos batendo palmas. Para ela.

"...Tudo! E como é que é?! É pique, é pique. É pique, é pique, é pique. É hora, é hora. É hora, é hora, é hora. Rá-tim-bum!"

Soprou as velas. Fez os pedidos. Saiu nas fotos.

No entanto, a cantoria não terminou: "Com quem será, com quem será, com quem será que..."

Ruborizou-se. Escondeu atrás da mãe, como se a grande protetora pudesse abaixar o volume das palavras e fazer com que todos se calassem.

"... Ele aceitou, ele aceitou, tiveram dois filhinhos e depois se separou."

Fechou o rosto. Separou?

Poxa. Se não bastasse a afirmação um tanto quanto prematura (convenhamos, foi-se a época em que com 9 anos seu casamento já estava predestinado!), ainda vinha essa de incluir o divórcio na musiquinha?!

Isso sim que é desanimador.

Ou não, isso são os tempos de hoje. A atual conjuntura. Um reflexo da modernidade. A contemporaneidade.

Talvez a separação veio justamente para se contrapor a certeza do nome do menino com quem ela se casaria.

Cortou o primeiro pedaço.

"Na lua-de-mel, na lua-de-mel, tiveram dois filhinhos chamados Manuel..."

Como se não bastasse casamento-relâmpago, ainda na canção existem as mães-solteiras ou as luas-de-mel fora de hora.

Na difícil missão de conciliar o casamento com a viagem, adia-se. No caso, adiaram-se, no mínimo, 9 meses, já que nela nasceu os filhinhos Manuéis.

E aí eu me pergunto: os dois se chamavam Manuel?

Seria uma forma de demonstrar a massificação ou a dominação dos portugueses em terras brasileiras? Ah, nenhum dos dois.

"Lá no restaurante, lá no restaurante, tiveram dois filhinhos chamados Elefante!"

Pronto. Esse foi demais. No restaurante?! As crianças nasceram no restaurante e, além do mais, foram chamadas de "Elefante"!

Animal. Se elas ainda tivessem nascido no zoológico, o nome seria mais compreensível (por mais que eu continue não entendendo esses tipos de nome).

- Esse é seu, Alice! Quer?

Acho que seria melhor aceitar. Depois de perceber a música que me acompanhou em inúmeros aniversários e que continua a acompanhar todas as crianças no dia em que o dia é só delas, exclusivamente delas, o melhor que eu tinha a fazer era comer o bolo.

Aceita um pedaço?

domingo, 5 de outubro de 2008

Já Pode Votar!


Sem dúvida, foi a frase mais falada neste meu domingo de chuva e tempo abafado.

Dentro da sala do colégio, sentada na cadeira verde, na companhia de mais três sortudos, lá fui eu cumprir meu dever como cidadã de uma república democrática...


Efeito Manada
Se as pessoas agem em bando, ou se é a partir do movimento de um único indivíduo que todos decidem agir, a freqüencia e horários para se votar não poderiam ser diferentes.

Tudo bem, é extremamente compreensível se notamos o fato em um restaurante - cuja fila de espera aumenta instaneamente após você chegar o que o faz pensar, enquanto folheia o cardápio : "nossa, se eu tivesse vindo 5 minutos mais cedo, olha onde eu estaria...". Depois, sorri satisfeito em meio aos nomes de comida.

Mas em meio a "confirmações de votos", "bom dia", "aguarde um minutinho", "pode ir" e inúmeros números de títulos fica difícil administrar todos formando fila na porta.

Na verdade, difícil é administrar o marasmo quando não há uma mísera alma votante...


Café
Faltou café. De manhã tudo era novo, a chuva batia lá fora, deu para se distrair. Começo de conversa com os companheiros de seção, coincidências aqui e acolá.

Histórias, anedotas, fatos corriqueiros que juntavam diálogos quebrados entre um ou outro barulhinho de confirmação de voto.

Agora à tarde... é, aí o bicho pega. Depois do almoço, depois da chuva; vem o sono, vem o abafado.

As preces do meio-dia ("ah, chega de chegar gente!") são exageradamente atendidas. Nada. Nem um cafézinho.


Números
Nada de café, tudo de números.

"Falta quantos minutos?"

"Quantos já vieram?"

"Dita pra mim. Espera, 0094 ou 3340? Como?"

"Digita: 4559 3934 5... 5? Ou 6? 6 ou 3? Espera, não dá para ler. Começa de novo. Vai lá: quatro-cinco-cinco-nove.. é, nove. Então, três-nove... aham, nove de novo. Três-quatro. Não, não foram 3 noves. Nanão, está certo. É três-nove."

E eu que fui para humanas pensando em fugir das exatas...


Memória Fraca
Ok. Sempre achei essa história de "colinha" meio desnecessária quando se fala em apenas 2 cargos a serem eleitos.

Mas facilita. Ainda mais se você já está na linha dos idosos, ou se você tem uma criança pendurada no seu colo querendo apertar todos os números só para ver todos os candidatos e seus sorrisos amarelos.


"Manhê! Ô pai..."
Desde sempre votava com meus pais. Aproveitava as eleições para ver não só a cara dos mesários (e pensar como eles são velhos, grandes, simpáticos ou chatos), mas também dos candidatos. Ali mesmo: o nome, o número, o voto.

É bom para as crianças. Incentiva, faz com que gere uma alegria de domingo: "Votei. Ajudei nas eleições.". Insulfla o peito: "Agora sou grande!". Aumenta o ego: "Grande! Gente grande faz o que eu fiz!"

Ao serem perguntados se iriam votar muitos se escondiam. Diziam que não. Davam uma risadinha tímida. Mas saíam rindo, felizes da vida. Votei!

Uma menina, inclusive, veio chorando no colo do pai. Não tinha maneira de fazê-la se acalmar.

Devia ser o trauma após ver tantos políticos picaretas serem eleitos. Ela não queria participar daquela sujeira. Queria sair dali.

- Filha, vou votar neste, ok?

-NÃO!!!

Foi a única palavra que disse na sala, em meio às lagrimas. Uma revolucionária.


Nomes
- Pode ir, Lindinha.

Nada de vocativos carinhosos. O negócio ali era sério. Lindinha. Lindo nome, quer dizer, lindinho.

Devia ser um bebezinho lindo. Os pais, bem corujas. Namorados? Criativos. Lindinha já era nome. Docinho? Florzinha? Mas aí virariam as Meninas Superpoderosas. Complicado. Haja imaginação.

Sumária, mulher do Sumário e mãe do Índice. Sim, também estava lá. Só que não com a família.


Coincidências
Lucila entrou. Estava na urna, quando Lucila entrou - deu seu título. Lucila, também. Estava na porta.

-Lucila, pode ir.

Foram as três. Espera! É só a primeira.

- Lucila, a senhora pode esperar na porta.

- Mas não era para eu ir?

- Não, a senhora vai, e a senhora fica.

- Vai ou fica?

E dá-lhe abraços, Lucilas, coincidência, coincidência, coincidência. Votos de Lucilas.

As três resolveram vir no mesmo horário.

As três xarás do caderno.


Rostos e Perfumes
Pessoal perfumado. Mulherada se arrumava. Alguns vinham com cheiro de cigarro. Outras, com perfume francês.

317 pessoas entraram naquela sala. 317 histórias. 317 vidas.

Passaram rapidinho, deixaram o perfume no ar, o barulho do "confirma" nas urnas, e um "bom trabalho".

Alguns eram irônicos. Outros solidários.

A maioria agradecia de coração: antes nós do que eles.

- Espero não me encontrarem, que medo que me dá de me acharem e mandarem que eu fique no lugar de vocês... - disse uma mulher. Arrumadérrima para um domingo de eleições.


Ofegantes
- Nossa, essa rampa cansa demais! Imagina as crianças desse colégio? Devem ter músculos bem definidos e pernas bem torneadas!

Reclamação número 1, era quanto à rampa de entrada.

Elogio número 1:

- Nossa, está vazio!



Trocados
Confirmações trocadas, destacadas em hora errada, votos incertos, eleitores indecisos, pequenas confusões.

Nada muito grave. Era só pensar no Brasilzão que tínhamos um consolo.


Brasilzão
Votou. E você?

Na minha, mais de 80 eleitores não compareceram. E eu assinei no lugar deles. Assinei um "NC" - não compareceu.

Mesmo assim, uma senhora preocupada, perguntou-nos se a mãe dela, já de 90 anos, tinha como trocar o lugar do título para aquele colégio, ao invés de ter que ir até o Ipiranga.

Ter, tinha. Mas só para as próximas eleições.

- Mas ela quer tanto votar...

- Ela pode, mas aqui neste colégio não é possível. Tem que mudar para as próximas.

Espero daqui a 2 anos poder encontrá-la.

*

[Sim, ser mesária é um prato cheio de pessoas diferentes, preocupações iguais e números -única parte parte que é realmente chata!]

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Moinho e Flores


Sua vontade é de agarrar o mundo,
envolvê-lo com suas idéias,
deixá-lo da sua maneira.

Mudar suas cores e sabores,
personalizá-lo.

Mas é ele que a agarra.
Sem o menor cuidado. Insensível.
Machuca.
Engole. Asfixia.

Muda seu jeito e seus gestos,
nocauteia.

Soca desfeitas,
cria hematomas,
sangra as lembranças.

Afoga em suas próprias lágrimas.

E nem tem tempo para conversar com o tempo para dar um tempo...

[Cadê essa primavera para desabrochar uma flor minúscula ou mirrada que seja..?]