sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Sentidos Perdidos IV


Tocou a campanhia. Dona Clotilde, com seu avental de flores e seu vestido de bolinhas laranjas, foi correndo atender. Adorava visitas.

- É aqui o 134, né? Vim arrumar algum cano...

- Ah, pode entrar... - sua insatisfação era nítida, ao ver que não era nenhum encanador bonitão para alegrar seu dia. - Olha, pode ficar aí mesmo, é onde tem um cano com problema.

- Mas esse seu banheiro está muito fedido... Eu, hein, ainda vou ter que aguentar esse cheiro?
Clotilde não entendeu nada. Para ela, era o cheiro que sempre sentira. Normal. Cheiro de nada. Largou o moço e voltou para cozinha onde preparava o bolo de aniversário de seu marido.

Adorava cozinhar, principalmente doces. Sempre empanturrara seu Gerson de tortas de morango, de limão, pudins de leite, bombas de chocolate e bolos, bolos, bolos. Depois reclamava do tamanho da barriga do marido, ou da descoberta das diabetes.

- Ô mãaaaae...

Mal colocara o bolo no forno e teve que ir correndo ver o filho que acabara de acordar, com cheio de ressaca. Não percebeu. Só notou o rosto cansado do garoto.

- Que foi? Que horas você chegou ontem?

- Não sei. Só sei que eu precisava ir ao banheiro para tomar banho e tem aquele cara lá. Já não agüento meu cheiro, estou muito fedido, mano.

- Claro que não, filhinho, só está cansado. O moço vai arrumar o banheiro e depois você vai. Você está cheirosinho como sempre.

A mãe, realmente, enlouquecera. Ou estava com o nariz realmente entupido. Nem ele se aguentava com aquele odor desagradabilíssimo que saía de seu corpo após um dia e uma noite suando e nada de banho.

- Mas filho, que bagunça está esse seu quarto! Deixa eu arrumar um pouco...

O "pouco" dela, tornou-se horas de arrumação, e descobertas em meio às roupas amontoadas e revistas espalhadas.

- Mãe... Acho que tem alguma coisa queimando... Você está sentindo?

- Ah, deve ser o vizinho, você sabe como ele é!

Do banheiro, ouviu-se um berro. Era o encanador avisando que sentira cheiro de queimado vindo da cozinha.

- Esse encanador é muito intrometido. Onde já se viu, falar que alguma coisa estaria queimando se não há nem cheiro!?

- Na verdade, mãe, eu estou falando sério, está cheirando sim a queimado. Você não colocou nada no forno?

- Claro que sim, o bolo de aniversário do seu pai, mas acha que eu, nesses anos de cozinha que tenho, deixaria alguma coisa passar do ponto?

- Sei lá, mãe, o cheiro está realmente muito forte...

- Você está imaginando coisas, é o cansaço. - disse enquanto estendia os lençóis.

Um grito desesperado interrompeu a arrumação, era, de novo, o encanador:

- FOGO NA COZINHA!

Saíram correndo. A cozinha estava uma fumaça só. Mal se via o fogão, a geladeira. O cheiro era impossível, sufocante. Não conseguiam respirar. Dona Clotilde, porém, respirava. Não entendia da onde viera aquela fumaça.

- Ué, mas o bolo nem queimou! Como pode ter saído essa fumaceira? - disse após seu filho, com o instintor de incêndio, amenizar o fogão que era, literalmente, um fogão.

- Nem queimou? Isso é só carvão, dona!

- Nossa! É mesmo! Mas nem está cheirando a queimado...

Realmente, o encanador percebera que havia se metido na casa de uma senhora, no mínimo, sem nariz. E quase morrera em um incêndio.

- Mãe, você está doida? Olha isso aqui! Quase que a gente morre!

Doida ela não estava. Só não sentia cheiro nenhum. Seu olfato, de fato, estava com sérios problemas. E agora? Será que nunca mais uma flor seria carregada de perfume?

Se bem que para ela, flores não interessavam. A verdadeira preocupação era com as comidas - não sentiria mais aquele cheirinho de almoço pronto no ar. Não sentiria o gosto de seu almoço. Não saberia se a quantidade de sal está boa. Erraria o ponto de todos os bolos. Erraria a dose de açúcar.

E perderia o posto de "cozinheira-de-mão-cheia". Todos a criticariam. Deixaria de ser a melhor mãe/esposa/vizinha.

O jeito seria parar de cozinhar - pelo menos assim as pessoas não a veriam errar. Mas, em compensação, nunca mais sorriria ao ver alguém elogiar sua comida, em frente ao prato vazio.

2 comentários:

Ana Paula Saltão disse...

eu acho que a cozinha deve ter ficado da cor de âmbar ao entardecer... x)

Felipe Lobo disse...

Danou-se!

Agora, queria mesmo saber que diabo de cor de âmbar é essa...