quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Nós

E foi assim como tudo começou. Uma ponta aqui, outra ali. Éramos, apesar de tudo, um fio só - pena que não sabíamos. Nem desconfiávamos. Aliás, a única diferença entre nós era o lado para onde íamos. Ou melhor, o lugar para onde olhávamos. Esquerda ou direita; frente ou trás. Sempre assim: opostos.

Numa tarde abafada de pleno agosto, nos pegaram. Nunca havíamos nos olhado. Cada mão, agarrou-se a um de nós. Apertou-nos - e fez apertarmos nossas vistas para confirmarmos aquilo que víamos: outros eus. Iguaizinhos.

Nos víamos, porém ainda não éramos nós. Éramos dois eus, que suspeitavam se tornar um nó, mas só suspeitavam. (Era aquela suspeita bandida que surge quando os olhos apertam os corações - os quatro olhos, apertando os dois corações diferentes. Diferentes-mas-nem-tanto, afinal, estavam prestes a virar um só. Um nó.)

Nos enrolaram. Nos envolveram. Nos apertaram. Tão firme que ficamos sem ar. Nos deram um nó. Dois. Três. Nos firmamos, nos firmamos. Ou nos amarramos? Nos amarraram.

Nós viramos nós. Assim continuamos por um longo tempo... Presos, feito aqueles de marinheiro. Feito aqueles na madeira - colados ao jatobá.

Foi nessa época quando nos tornamos nós cegos de tanto amor. Além de cegos, insuportáveis. Ninguém nos aguentava mais: "estão muito fortes! Não consigo nem soltar! Olha que apertados... Sufocante!"

Tentaram nos separar, mas éramos tão apertados que garfo nenhum conseguia tal feito. "Vou buscar uma tesoura!", ao ouvirmos a frase, demos um nó na garganta. Imediato. Tesoura?!

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As lâminas afiadas se aproximaram de nós. Dos nós. As mesmas que já haviam rasgado cartas de amor, sem darem tempo de serem entregues, sem permitirem um sorriso doce ao saírem do destinatário.

Elas estavam ali, nos encarando. Juntinhas, cínicas, nos observavam. De repente, abriram, brilharam e nos deram um abraço gélido. Simples e rápido. Toda a força que tínhamos esmaeceu-se. Toda a dificuldade para nos soltarem se foi. As linhas se estiraram. Fomos nos desfazendo, nos soltando, nos quebrando.


Conseguiram. Elas, as lâminas, desfizeram os nós (desfizeram-nos). Quero dizer, ela. Cruel, fria e que nem marca tinha - nessas horas você percebe a importância das marcas para cortarem as relações: nenhuma. Elas aparecem depois.

Ela veio como quem não quer nada. Estava muito bem amolada. Melhor seria se estivesse cega, ou se a mão que antes nos unira, agora não se encaixara nela para nos romper.

Subitamente, dilacerou-nos. E foi de tal modo que nunca mais nos vimos. Cortou qualquer ligação que houvesse entre as pontas. Nosso fio já não era o mesmo. Diminuímos.

Terrível foi o dia em que éramos nós e voltamos a ser apenas eus. Terrível. Passei a ser somente um pedaço. Assim, incompleto.

Maldita tesoura.

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