terça-feira, 2 de setembro de 2008

Dupla Personalidade


-Deixa eu falar com a Irene.

Era uma manhã de segunda. Mal começara a semana, já estava recebendo ordens pelo telefone. E a voz não passava de uma criança.

-Desculpa, não tem nenhuma Irene.

-Como não? Tem sim, mano. Deixa eu falar com ela.

-Não, não tem.

-Tem! Ela me deu esse número.

-Então você discou errado.

-Claro que não! Fiz certinho, ó aqui.

-Você ligou pra qual número?

Sim, confirmava. Era seu telefone. Mas não podia ser, não havia nenhuma Irene.

-Olha, sinto muito mas desde que eu saiba, não moram Irenes aqui.

-Mora que eu sei.

-Sabe errado, porque não moram.

-Mora!

-Não mora.

-Mora sim!

-Não mora. Saco!

Desligou irritada: se ela disse que não, era não, oras... Horas, aliás, se passaram para que o barulho ensurdecedor do telefone voltasse a incomodá-la.

-Alô?

-Mano, eu quero falar com a Irene.

-Você de novo? Quantas vezes vou ter que dizer que não existe nenhuma Irene neste número?

-Existe sim, você que não quer que eu fale com ela.

-Não existe não, se existisse aposto que não teria porquê não passar o telefone a ela. A menos que ela esteja fugindo de você. Ela está fugindo de você?

-Não, né! Ela que me pediu pra ligar.

-Pediu, mas insisto: deu o número errado. Ou você se enganou ao anotar.

A voz aguda do menino se transformou em grave. Séria. Pesada.

-Dá pra parar de enrolar o menino e deixar logo ele falar com a Irene? Eu não tô de brincadeira não. Ele tem que falar antes de ir para a escola. É bom você passar logo essa porcaria de telefone.

-MAS NÃO TEM IRENE! Você acha que eu estaria enganando o moleque? Se eu disse que não tem, é porque não tem. E ponto.

-Moleque, não! Oh o respeito! QUAL SEU NOMI?

Juliana? Márcia? Lívia? Sandra? Qual seria seu nome? Mentiria, diria a verdade? O que responder?

-Não tenho nome...

-Como não? Tá com MEDO? Fala seu nomi então, já que você não quer que ele fale com a Irene!

-Ir..não, Sandr...NÃO INTERESSA MEU NOME!

-Você tá se escondendo, né, mano, vai falar ou não vai?

-Sinceramente? Não vou falar coisíssima nenhuma, mesmo porquê já perdi demais do meu tempo aqui. Você vai ver, depois o menino chega na escola e fala com a Irene sobre a confusão. E nunca mais voltará a ligar, pois verá que não é esse o número dela.

Começou a se confundir. Será que ela era a Irene? Será que o nome pelo qual todos a conhecia, Sandra, não passava de alguma leitura mal-feita e errônea de seus verdadeiros documentos? Pseudo-nome?

Novamente, aliviou-se ao ver que haviam desligado. Alívio curto - minutos depois, ouvia o toque vindo do aparelho.

-MOLEQUE, AQUI NÃO TEM IRENE!

-Moleque não, eu sou homi, já! E DEIXA EU FALAR COM ELA!

-Será possível uma coisas dessas?! Desculpa, então, HOMI, NÃO TEM IRENE AQUI!

Ele insistia. Ela se irritava. Não podia brigar como uma criança, mas agora, a criança dizia ser um homem...

-Pela milésima vez, você se enganou. Quando você for para o colégio, fala com a Irene e vê como houve uma confusão. Ou você anotou o telefone errado, ou ela se enganou e passou outro número. TALVEZ ELA NEM SAIBA QUAL O NÚMERO DELA DIREITO!

-Tá chamando a Irene de burra, mano? Você é da onde? É daqui do bairro?

-Não interessa. Não sei se sou daí. Eu não sou de lugar nenhum. A questão é: PÁRA DE LIGAR PORQUE AQUI VOCÊ NÃO VAI ACHAR A PESSOA CERTA!

Sem perder tempo, desligou. Na cara de uma criança! Mas ela dizia ser grande já...Sabia que ele voltaria a ligar. Foi tomar uma água. Ligou.

-Ó eu vou jogar uns papos sérios agora. Ouve bem. Você vai me passar para a Irene, senão..

-..Senão nada! NÃO TEM IRENE. E você não entendeu? Chega de ligar para cá.

Esse que era o problema, ela dava corda para as conversas. Adorava conversar. Maldito gosto! Tinha que gostar de ouvir os outros? Tinha sempre que palpitar? Tinha que ser intrometida, ouvir assuntos alheios, e ainda, não satisfeita com isso, comentar mesmo não sendo chamada?! Tinha que dar corda para um menino pelo telefone, insistente no engano? Não podia simplesmente ficar quieta? Não, não e não. Era um de seus males.

-Mas é que moça, eu sei que esse é o telefone dela...

-Moleq..quer dizer, HOMI. Seja forte e aceite: ela se enganou. Você se enganou. Todos nos enganamos. Acontece.

O dia passou e entre telefonemas, msn, blogs e emails, estava prestes a sair de casa. Já havia passado mais de uma hora sem a ligação do moleque-homi-mano-Irene.

Estranhava. Talvez ele simplesmente não tinha o que fazer durante a tarde...Mas essa Irene, também, tinha que mandar o número errado para o menino? Que inferno de mulher!

Ou será que... ela, Sandra, não era Irene? Ela também era um inferno de mulher. Ela ouvia conversas alheias, dava corda para alguns mesmo sabendo que não teria futuro, fazia com que acreditassem na sua simpatia mesmo sendo naturalmente antipática. Irritava, respondia, se intrometia.

Talvez fosse ela, Irene. Agora o menino precisava ligar. Tinha que tirar a limpo essa história. Como era a Irene que ele procurava? Alta, loira, olhos azuis e peitão? Não, então não era ela. Uma menininha com vestido sujo, meleca no nariz e pé preto de terra? Também não.

Ah! O telefone. Atendeu, pela primeira vez do dia, rapidamente.

-OI! Você quer falar com a Irene, né?!

-Eu quero, mano. Passa logo que eu já estou cansado. Chega de me tirar, mano, eu sei que ela tá aí.

-E ela é como?

-Quê? Sei lá como ela é, você é que tá com ela aí. DEIXA EU FALAR COM ELA, CARALHO.

Não era essa a resposta que ela esperava ouvir do menino. Como podia ser homi se a voz aguda e falha o denunciava? Era sim um menino. E meninos não deveriam falar assim, de jeito tão grosso.

A inocência, pureza e leveza pueril já não existia mais, pelo jeito. O momento de esperança dela se descobrir como Irene se foi. Evaporou-se como fumaça de café quente.

-Tá, foi engano. De novo.

Desligou.

Saiu de casa pensativa, angustiada. Preocupada com meninos-homens, com crianças que diziam ter crescido. Com duplas personalidades. O dia inteiro procurando uma Irene. Irene, dona de seu número de telefone.

Alguma coisa estava errada. Completamente errada. O mundo, agora sim, estava do avesso do avesso do avesso do avesso...

Ela? Após tantas chamadas, também voltou-se ao avesso. Entrou numa crise existencial. Exagerada, foi além. Não só sua existência estava agora fadada ao caos de crianças insistentes e desgovernadas, de telefonemas capazes de dar nós em cabeças desembaraçadas, mas também em alterar pessoas. Mergulhou também numa profunda crise de identidade.

Para amigos, continuava com o nome de sempre. Para desconhecidos, Irene. Isso quando aqueles com quem falava não faziam parte dos inclassificáveis: nem amigos, mas também nem desconhecidos. Aí o nome se juntava. Virava composto. Como mocinha de dramalhão mexicano. Era Sandra Irene. Ou Irene Sandra...

2 comentários:

Clara disse...

Nossa, lice, seu texto está muit...



~tá, não vou dizer que está muito bom. não quando um certo site de testes para pré-adolescentes me acusou de ser puxa-saco.

¬¬.

Teresa Perosa disse...

\o/, oh crise de identidade!

será que irene e teresa combinam?

besitos
texto hermosísimo!