terça-feira, 7 de julho de 2009

Surpresas

(I)

Eu sabia que não deveria ter ficado em casa. O tom dela quando se despediu, logicamente, demonstrou sua preocupação. Não comigo. Mas com o que eu poderia fazer. Com o que eu poderia encontrar.


Provavelmente, deve ter se arrependido das reclamações quanto a minha desordem, quanto a minha desorganização. "Não aguento mais essa bagunça! Este chiqueiro! Já devia ter suspeitado que sua casa seria um reflexo de seu quarto... Claro, claro. Ele não conseguia manter um quarto arrumado, como não pude prever que manter um apartamento seria impossível?!", reclamava.

Agora estou aqui, perdido em minha bagunça, encontrando a bagunça dela. Não deveria ter resolvido fazer uma surpresa. "Olha, só, amor, arrumei as gavetas!"... Quando melhor se quer ser, pior acaba sendo. As gavetas... Essas cartas... Essa foto! Como ela está bonita... Tão linda que tenho vontade de matá-la. Feliz, idiota. Com um canalha ao lado. Sorrindo, abrançando-a. Não sou eu.

Quanto mais mexo nestas papeladas, maiores são as punhaladas. Arrumar... Muito mais deveria ter sido arrumado. A começar pela nossas vidas.

Não era só da bagunça que ela reclamava. Era também do cheiro de cigarro que empestava a sala. "Quando você deixará de se intoxicar? Você se mata pouco a pouco!". Me mato. Ela que, agora, cada vez mais, me mata. Corno.

Preciso encontrar mais sujeira, um bilhete de cinema, teatro, notas fiscais. Esfregue isso na minha cara. Quero ver. Tudo com outro cheiro. Como não pude perceber. O ar estava empestado não pelo meu cigarro, mas pelo perfume barato daquele filho-da-puta.

Aliás, cada vez mais, sinto vontade de fumar. Para que tudo - a cama, o sofá, as almofadas - fique com o cheiro do meu cigarro. Para que não possa mais sentir o chero doce dela pelo apartamento. Doce o caralho. Azedo. Azedo ao se imaginar que se misturou com o de outro.


Obsessivo? Não. Eu que tive aguentar toda sua obsessão. Sim, sim. Ela era assim: obsessiva. Não podia ver uma conta sem pagar - apesar de muitas delas assim ficarem - que entrava em desespero. Não comia "carboidratos". Nem glúten. Se colocasse uma torrada na boca dizia que morreria. Nunca vi alguém que não comesse glúten. As embalagens deveriam alertar somente a ela sobre tal ingrediente.

Também tinha mania de simpatia. Assim mesmo. Tinha que ser boazinha com todos. Todos a adoravam. Sorriam e ela sorria.

Com os vizinhos, inclusive. Sabe aquela história de entregar um bolo, assim que se muda, para os outros apartamentos? Aquela, que só se vê em filme tosco americano? Ela fez questão de protagonizá-la. Ridículo.

Entregou para os vizinhos do andar. Todos. Sorte que isso tudo não passou pelo elevador. Azar nosso prédio ter 6 apartamentos encrustrados nesse maldito 4º andar.

Aliás, devia ter suspeitado antes. Ah, vagabunda. Aquelas tardes sem ir ao trabalho! Agora eu entendo bem o que ela fazia... Enquanto o infeliz aqui passava horas em frente ao computador, ouvindo o idiota do chefe, ela, com certeza deveria estar se entregando para os vizinhos do andar. Do prédio. Do bairro. Não, não, só deve dar para aquele moleque do 45. Puta.


(II)

Puta, tenho que correr antes que ele perceba. Já combinei com o Fábio de passar lá naquela loja de vinhos... Aquela, qual é o nome? Que tem um monte de vinhos bons, caros, e tal... Nunca fui lá. Ele me falou que era uma boa.

Enfim, dane-se o nome. Afinal, o que é um nome?! What's in a name? That which we call a rose. By any other name would smell as sweet. Não, não. Não tenho tempo para Shakespeare. Quem diria! Eu, recusando-o de meus pensamentos! Oh, Ana Lúcia Vasquez, você não era assim. Nunca foi.

Até aí, eu também não sabia que tinha essa doença maldita celíaca. Quando dizia que tinha problemas com o intestino ninguém levava a sério: "Toma Activia...". As pessoas acham que o único problema de intestino que uma mulher pode ter é prisão de ventre.

A humanidade se renova no seu ventre, escreveu Cora Coralina. Não era assim? Não é assim, afinal? Do ventre saímos, oras. Cora Coralina é um nome que soa bem. Ah, meu deus, cadê o Fábio? Ficamos de nos encontrar aqui, garçom, nessa mesa de bar...

Preciso além do vinho, de alguma coisa para decorar a sala. Umas velas, talvez. Não sei porque o Rogério inventou de ficar em casa. Justo hoje! Ou será que ele sairá mais tarde? Daqui a pouco eu ligo, porque se ele estiver lá, vai dar tudo errado. Tudo.

Acho que as coisas já vem dando errado, para falar a verdade. Não sei, ele parece distante, diferente. Me olha com outros olhos. Sempre com aquele maço nas mãos, maldito. Ele, que me tem em suas mãos, prefere agarrar aquele pacotinho cheio de veneno. Como odeio cigarros!

Já o Fábio... Ah, querido. Sempre alto-astral, vai para a academia, cozinha... É uma belezura! Me divirto tanto com sua companhia... Às vezes, penso até que seria melhor viver com ele e não com Rogério.

Ai, Ana Lúcia! Que baboseira! Imagine só, o que os vizinhos diriam?! "Essa daí, saiu do 41 e pulou para o 45", que horror!

Bom, depois do vinho, a gente passa em algum lugar, compra umas velas. Acho melhor já comprar comida, também. Peixe? Carne? Não sei. O que estiver com a cara melhor. Não vou ficar cozinhando. Iria estragar meu visual. Tenho que ficar linda.

Sorte que o Fábio me acompanha. Ele me acompanha para tudo. Sempre disposto.


(III)

Disposto a expulsá-la de casa, Rogério já não podia suportar tanto sofrimento. Passara a tarde vasculhando as gavetas, os armários da casa, em busca de pistas que o fizessem cada vez mais acreditar em uma possível traição.

Não fora trabalhar. Passara o dia remoendo-se. Ódio. Era isso que sentia. Não diziam que seria o ódio o oposto ao amor? Pois antes o amor sentido, agora se transformara em ódio.

Queria esganar o rapaz do 45. Esportivo, dentes alinhados, bom moço. Sabia cozinhar... Quantas vezes, com um avental amarrado na cintura, não tocara a campanhia para pedir uma xícara de farinha? "Não temos farinha! Ela tem problemas com glúten!", repetia.

- Amoor... Cheguei!

Carregando sacolas de vinhos, queijos, velas - era isso mesmo? Velas?! - e coisas não identificáveis mas que cheiravam a comida, Ana Lúcia tentava se equilibrar para trancar a porta.

Passara o dia inteiro na rua para preparar algo especial para a noite. Sabia que Rogério merecia. Esteve tão irritado durante todas aquelas semanas, coisas do trabalho, sei lá, que um jantar especial, com certeza, faria esquecê-lo de seus problemas.

- Amor? É isso mesmo? Você também chama aquele moleque assim - de "amor"?

Não entendeu. Colocou suas compras de lado, em um canto, e andou em direção ao marido.

- Não, querido, não estou entendendo... - disse enquanto seus braços, carinhosamente, o envolviam - Você não foi trabalhar? - perguntou antes de beijá-lo.

Virou a cara. Não suportava aquela falsidade. Onde já se vira? Ela passou o dia inteiro me traindo e agora vem cheia de mimos para cá? Dirigiu-se para o canto, onde estavam as sacolas. Tirou um vinho e passou a observá-lo.

- O que são essas coisas? Cabernet. 2005. - olhou-a através do vidro. Tudo estava vermelho, transfigurado. Apertou a garrafa pelo gargalo. Fez que a atiraria contra a parede.

- Não! Rogério, querido, o que está acontecendo? Comprei para que nós...

- ... Nós?! Não existe mais "nós", Ana Lúcia.

- Como não?! Você está se sentindo mal? O que está acontecendo, meu Deus? Você está agressivo!

Meus olhos começaram a arder. Arder tanto que parecia que eu estava cortando cebolas. Não, parecia que estavam sendo cortados. Lacrimejavam. Apertei Rogério pelos braços. Ele me empurrou. Caí sentada. No sofá.

- Rogério! Você está louco! O que acontece? O QUE ACONTECE?!


Desatei a chorar. É isso que acontece.
Quando melhor se quer ser, pior acaba sendo.

- Você não vê, Ana Lúcia! Passei o dia inteiro em casa, mas preferia não ter passado. As coisas que vi... Preferia não ter visto. "O que os olhos não vêem, coração não sente", certo? Bilhetinhos do 45? Cartas com declarações de amor? Notas fiscais de lugares onde nunca estive! Ana Lúcia. - parou subitamente. Olhou nos olhos molhados da mulher - Você me traiu.

Ela não para de chorar, caralho. Eu que sou traído e ela que se faz de coitada. Mulher não presta, mesmo. E esses pacotes todos?! Jantar... Com certeza agora deve estar arrependida. Mulher não presta.

- Rogério - ele me faz chorar, para que minha cara fique inchada e minha maquiagem borrada. Não estou acreditando. Tenho que parar de soluçar - com quem eu teria te traído?

- Aquele moleque, do 45.

- Fábio? Atleta, bonitão?

Ainda tem coragem de chamá-lo assim, e com essa calma. Para de soluçar, porra!

- Aquele atleta, que ficaria lindo depois de uns socos, sem dente, roxo.

- Rogério! Por favor, pare. Pare! Não fale assim...

-... DO CANALHA? Agora devo também elogiá-lo? Ah, sim, e por que não dividir você com ele... Chame-o aqui. Adoraria um ménage! - minha vontade é de ESPANCÁ-LO.

Não acredito. Não acredito que ele pensa que o traí. Não acredito. Sinto vontade de rir. De gargalhar. HAHAHA. Agora, além de soluçar, estou gargalhando. Para! Para de soluçar, ou de gargalhar... Olha a cara do Rogério! Meu deus, ele não está entendendo nada... Coitado! Eu, com Fábio? hahaha, eu e Fábio! Tenho que parar de soluçar! E de gargalhar! Ele está ficando nerv... Eu com o Fábio! Quem diria...

Vadia, ainda tem a coragem de rir na minha cara! Gargalhando, descaradamente. Mulher não presta. Ana Lúcia, Laura, Rosângela, Márcia, Marcela... TODAS! Qualquer uma! Puta-que-o-pariu!

- PARE DE GARGALHAR! - berrou enquanto os soluços de Ana Lúcia misturavam-se, desesperadamente, às risadas.

- Rogério, Rogério... Fábio não gosta de mulheres.

- Viado! Fui traído por um viado? Só me faltava essa!

Não acredito. Sinto vontade de rir. De gargalhar. HAHAHA. Homossexual, Fábio! Quem diria! Eu bem que suspeitava... Aquele avental, aquele jeito delicado, sabia bem escolher as palavras, mal usava palavrões.

- Não foi traído, Rogério! Eu nunca faria uma coisa dessas!

Não, mas não é possível. GAY? Ainda não estou acreditando. FÁBIO? GAY. Mas, por que ela esconderia isso de mim? E esses passeios...

- O que significam essas fotos, então? - disse, revirando a gaveta em que as encontrara.


- A gente tem saído, ele tem me ajudado muito, hoje mesmo, fomos comprar as coisas para você. Ele gosta muito de você.

- E o que são aquelas notas, bilhetes?

- Para você.

Quero rir. Muito. E abraçá-lo. Como é bobo! Meu deus! Como foi capaz de pensar uma coisa dessas... Quero rir. Muito. E abraçá-la. Como sou bobo. Mas não é possível... Gay?! O Fábio? Mas ele e Ana... Como fui capaz de pensar uma coisa dessas... Ele pensou que estávamos juntos. Ciúmes de alguém que nem de mulher gosta. Gosta como amiga, como todos os homens deveriam gostar. Ciúmes de alguém que nem de mulher gosta... Amiga, vá. Que graça tem sendo só amigo?

Começou a chorar. Ou melhor, ambos tinham os olhos molhados. Se abraçaram. Se beijaram. Tomaram o Cabernet. Comeram. Sorriram, riram. Se abraçaram. Se amaram mais do que nunca. Acima de tudo, perceberam: as surpresas muitas vezes traziam surpresas, para ambos os lados. Surpresas, realmente, inesperadas.

3 comentários:

path.andrucioli disse...

Querida Alicinha,

Como sempre está muito bom o seu post!Afinal, quem ficou aqui te ajudando indiretamente, hein?hein?!rsrs
Só não coloco no twitter de novo pq vou começar a cobrar jabá..
tô com uma fome...e aí?rola uma pipoquinha por uma twittada?rs

beijos criatura!

Renata disse...

Me hipnotizei nesse texto, de verdade. Delicioso.

Maria Joana disse...

meu, Alice, fiquei grudada e vidrada no texto. Muito bom!
fisgou direitinho! As trocas de lados, de vozes deles. Ficou ótimo.