terça-feira, 7 de abril de 2009

Condenado

Estava destinado a ter um cachorro Cocker sem graça, uma mulher que mimasse o cachorro Cocker sem graça, uma filha com aparelho nos dentes viciada em video-game que também mimasse o cachorro sem graça. (E ninguém que o mimasse - apenas que pedisse para ele também mimar o cachorro Cocker sem graça)

Ia acordar às 6h, todos os dias, bater cartão como funcionário de uma repartição pública, tomar cafezinho todas as tardes na copa. Cumprimentar o porteiro, voltar para casa, levar o cachorro para passear e dar mais jogos para a filha. Visitar a sogra aos domingos, comer a mesma macarronada com frango, ler o jornal de vez em quando e assistir ao Fantástico.

Antes, jovem que era, sonhava com um mundo de possibilidades. Agora, com cabelos grisalhos a surgirem e o maldito Cocker a latir, não entendia no que errara - mas sabia que as possibilidades não eram bem possibilidades, afinal, a escolha seria única e o que se escolheu já era previsto.

Poderia ter aceitado a mudança de país logo num de seus primeiros empregos. Não quis. A mulher o convencera de que não se adaptaria e já estava na hora de ter algo sólido onde sempre vivera. Mudar de país acarretaria um novo começo de vida e se fosse para ter um novo começo de vida que fosse colocando uma menina no mundo.

Poderia ter bebido mais em encontros com os amigos - deixara de entender muitas piadas, foi sério demais. Aliás, levara a vida muito a sério com sua água tônica. Em compensação, não tivera problemas no fígado como alguns de seus companheiros. Nem problemas no casamento.

Antes não sabia o que seria dele. Poderia saber, mas preferia optar pelo desconhecido. Não acreditava em destino. Agora, tinha a certeza de qual seria seu futuro.

Continuaria tendo que aguentar o cachorro maledeto, passear no parque com a filha depois de muita insistência de sua esposa, levar a menina ao dentista, comprar aquela bota de cano alto de presente de aniversário para a mulher, passar sempre no jornaleiro - folhear todas as revistas - e sair com o mesmo jornal, carimbar os processos que se acumulavam em sua mesa, e beber água tônica.

A certeza de saber o futuro transformou as peripécias do destino em algo tão óbvio que preferia, mas não admitia, ter a incerteza que sempre tivera.

Preferia, no fundo no fundo, poder jogar de lado toda aquela previsão do que a que estaria fadado - seja lá o que isso fosse. Era tarde. Estava condenado.

3 comentários:

Tulio Bucchioni disse...

Nossa, Lice!

Qnd vc decide escrever um post com vontade vc na verdade não faz só um post: faz um roteiro de cinema! Lembrei daquele inesquecível do casal e do McDonald's...!!!
É incrível como todos esses detalhes e minúcias se transformam num quadro, numa cena, que é absurdamente palpável, cara!

Angustiante. Mas compreensível em toda a sua frustração contida! Botas de cano longo...hahaha...

Incrível! Que orgulhooo..!!
=)

Bruna Escaleira disse...

quase te liguei pra perguntar o nome do infeliz do texto pra tentar salvá-lo!

(mas será que existe "tarde"?)


Parabéns, hijita, esse post tá demais!

Alice Agnelli disse...

eu acho que não.
ele acha que sim.

e bru, pode me ligar que eu ficarei feliz até mesmo se for pra perguntar nomes de infelizes!

=)